Dias de pavor e a busca pela ajuda: conheça histórias de mulheres que denunciaram a violência doméstica durante a pandemia
Vítimas afirmam que crise econômica e maior convivência durante a pandemia agravaram situação em casa. Mulheres buscaram ajuda na Casa Help, abrigo para vítimas de violência doméstica no litoral de São Paulo. A Lei Maria da Penha completa 15 anos neste sábado (7).
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Mesmo que por caminhos diferentes, as três chegaram à Casa Help, uma ONG que fornece abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica no litoral de São Paulo.
A casa foi fundada por Rita de Cássia há 16 anos. Além de abrigar as mulheres, a Help as ajuda a procurar emprego e a montar uma casa para que elas possam retomar a vida longe do agressor. Desde que foi fundada, Rita conta que já montou quase 1,8 mil casas.
Ela diz que, desde que a pandemia começou, os pedidos de ajuda aumentaram bastante.
“Dentro do ciclo familiar, gerou-se o desemprego, a falta de alimento e de estrutura para o pagamento de contas fixas, e isso vai gerando um fluxo enorme de agressividade. Então, às vezes, situações que eram apenas de violência psicológica e moral passam para a violência física”, diz Rita.
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Rita afirma que este número já é assustador, mas diz que, na realidade, ele é muito maior. “A gente percebe que o reflexo da violência é muito maior [do que o número oficial]. Você pode pôr aí três vezes o que é apresentado. O número é altíssimo”, diz. Isso porque, segundo ela, muitas mulheres desconhecem seus direitos e os deveres dos órgãos públicos nestas situações de violência doméstica, bem como a existência de instrumentos como a medida protetiva.
Além disso, Rita diz que a subnotificação é alta por conta do medo e da impunidade. “Vários fatores fazem com que ela não procure a Justiça. Ela vai na delegacia fazer um boletim de ocorrência, mas ela tem a noção de que o agressor não vai ser preso”, afirma.
“Às vezes, não tem pessoas qualificadas lá [na delegacia] para fazer esse atendimento. São atendidas por homens. Elas estão com aquele repúdio do machismo, da dor que elas estão enfrentando e ainda têm que transmitir isso para um homem”, diz Rita.
Mesmo assim, Rita segue firme e forte, tirando do próprio bolso os recursos para manter a ONG de pé e ajudando outras mulheres. “Eu acho que toda vida tem valor. Todos nós passamos por dificuldades. O problema é o primeiro passo para a segunda chance, que a mulher vítima de violência não consegue com muita facilidade. E é esse passo que eu tento ajudar”, diz.
A rotina e o trabalho de Rita foram mostrados em uma edição do Profissão Repórter. Veja a reportagem completa. Veja também informações de como ajudar a ONG no final deste texto.
Leia abaixo os depoimentos de três mulheres que receberam a ajuda da Casa Help e conseguiram deixar para trás a rotina de violência doméstica.
— Foto: Wagner Magalhães/G1
Este texto contém trechos que descrevem cenas de violência doméstica.
Dias de pavor
Depoimento de Renata*, 36 anos
“Esse era mais um dos dias de pavor que eu ia passar mais uma vez. Parece que eu já sabia o que ia acontecer, mas eu não tinha saída. Ia acontecer de novo, mais uma vez. Brigas, discussões, amante no telefone… E eu sem ter como sair da situação.
Eu fiquei na casa pela minha filha. Ela não era maltratada. Já eu, quase todos os dias.
A situação piorou com a pandemia. Nós dois estávamos desempregados. O dinheiro do auxílio vai para o aluguel. Mantimento é difícil de você conseguir, a não ser nas igrejas. Custo com roupa, medicamento, tudo que uma criança precisa, é difícil de conseguir. E aí começam as discussões.
Minha autoestima já estava acabando. As empresas não te contratam se você não estiver bem vestida. Aí você perde a esperança e começa a viver só para ter um abrigo para a sua filha.
Todos na rua sabiam. Dava para ouvir os meus gritos. Ninguém me ajudava. Eu precisava de um emprego, de uma saída, de um lugar para eu sair daquela situação, e isso ninguém forneceu. Me julgaram pelo que eu vivia ali, e não pelo que eu queria ser a partir dali.
Ele começava a me agredir. Não dava mais para eu conviver com ele sem ter nada com ele, sem dinheiro para poder custear a casa. Não tinha como.
Nesse dia, eu estava de pé no sofá. Ele empurrou minha cabeça na parede. Eu fiquei com medo que, naquela hora, minha filha ficasse sem mim. Mas doeu mais pelo fato de que as pessoas ouviram meus gritos e ninguém foi na minha porta para me socorrer.
Eu peguei minha mochila e saí do jeito que eu estava. Deixei meus documentos, deixei um monte de coisa para trás. O mais importante era a minha filha.
Está sendo muito gratificante para mim e para a minha filha. Eu prefiro que ela viva longe de tudo. Que ela esqueça tudo que passou para ter uma vida diferente da minha.
Eu preciso ser duas vezes melhor. Eu não sou o que tentaram fazer com que eu fosse. É disso que eu preciso, de oportunidade. Porque eu sei que eu posso. Eu sei que tem porta aberta para mim. E agora não tem mais ninguém para me colocar no chão.”
Sem saída
Depoimento de Maria*, 36 anos
“As pessoas falam que não vão se envolver em briga de marido e mulher. Elas usam muito aquele ditado de que em briga de marido e mulher, não se mete a colher. E falam que você se envolveu com a pessoa porque você quis.
Ele se apresentava como uma pessoa muito boa. Ele falava que ia ser diferente, que ia cuidar bem de mim, que ia cuidar bem dos meus filhos. Mas ele bebia muito. E, toda vez que eu procurava para conversar, era pé de briga. Quando ele não queria me ofender para me afetar, ele afetava meu filho.
Ele me proibia de ir para a igreja, me proibia de sair, de usar roupa curta, maquiagem. Infelizmente, eu acabava me sentindo culpada.
As filhas dele falavam que eu tinha que tomar uma decisão, porque ele ia acabar me matando ou matando meu filho. Já a minha família tinha medo. Tentavam entrar em contato e ele não deixava.
Eu já tinha pensado em ir à delegacia, mas dificilmente eu conseguia sair de casa sozinha, eu sempre saía com ele. Até para ir ao banco para receber auxílio, ele sempre estava junto.
Ele falava assim: ‘Não adianta você querer pedir ajuda, não vai dar em nada. Aqui do lado da minha casa, morreu uma moça esfaqueada, o homem arrastou a moça com o carro e não aconteceu nada. Você acha que, com você, vai acontecer?’.
Os homens acham que, na pandemia, ninguém vai fazer nada, a polícia não vai fazer nada.
Até que, depois de uma briga, eu tive que falar para a professora do meu filho que não dava para ele voltar para a escola, pois a gente teve que sair de casa por causa de uma situação de violência doméstica.
A professora falou: ‘Olha, passei sua situação para a diretora. Como é uma escola, a gente não pode deixar você e uma criança estar sofrendo violência e a gente deixar a situação no silêncio’.
Elas pediram para eu procurar a assistência social. A assistente conversou comigo e me passou para o Creas. Eles me ajudaram a fazer o boletim de ocorrência e a pedir [a medida protetiva].
Também me acompanharam até a minha casa. Foram vários homens juntos para o caso de, se ele estivesse na casa, não ter mais atrito. Depois, eu vim com o meu filho para o abrigo.
Então não desista, que sempre vai ter um lugar para ajudar. Sempre vai ter. Ficar no mesmo lugar, sofrendo violência, ficando com um filho, dois filhos, três filhos, quem acaba perdendo é a gente. É a gente que é melhor que acaba sofrendo.”
Cabeça erguida
Depoimento de Joana*, 32 anos
“Eu fui casada por 18 anos. No começo, era um mar de rosas. Ele não mostrava quem era. A gente foi vivendo. Mas ele começou a usar drogas.
Ele roubava o meu dinheiro. Ele vendia as minhas coisas e eu não achava certo. Eu tinha carro; ele vendeu meu carro. Ele vendeu a minha casa toda, tudo. Eu falei para ele: ‘Você pode fazer o que quiser, mas não aceito que mexa com as crianças'.
Quando ele estava sem a droga, era um ótimo pai. Não tinha do que reclamar. Era um ótimo marido. Mas, a partir do momento que ele fumou um tipo de droga ou bebeu, acabou a pessoa.
Eu não podia me arrumar. Ele falava que era ciúmes, mas, para mim, não era ciúmes. Eu não podia cortar o cabelo, não podia usar maquiagem, não podia usar calça. Era só roupa de velho, até o pé. Eu andava como uma velha.
Quando ele vinha bater, eu não aceitava, eu ia para cima. Não queria mais apanhar. Mas ele colocou na cabeça isso: ‘É mulher, ela tem que me obedecer, tudo que eu falar, ela tem que acatar’. Ele tinha essa visão.
Chegou o momento que eu disse não para a situação. Tenho que pensar em mim. Eu tenho os meus filhos que dependem de mim. Se eu falecesse, quem iria cuidar dos meus filhos? Como eu iria deixar com um pai desse jeito? Então tem que criar coragem e falar: “Eu vou conseguir lutar’. Do mesmo jeito que eu consegui, todo mundo consegue.
Tem que erguer a cabeça e ir em frente. Começar e terminar. Porque muitas fazem boletim de ocorrência e ficam com dó. Eu fiz uns cinco boletins antes e sempre eu ficava com dó. Então eu pensava nele e ele não pensava em mim.
Eu não tenho medo mais. Ele continua falando que vai me matar. Então se eu não ficar protegida, se a Justiça não continuar me ajudando, como que eu irei continuar?
Os homens têm que ser punidos e ir para a cadeia, pois muitos cometem o crime e fogem. A Justiça tem que liberar a medida protetiva para as mulheres e tem que ter acompanhamento.”
Serviço
Casa Help
Telefone de contato para doações: 13 99758 8351
PIX 15699589000135
*Os nomes são fictícios para proteger a identidade das vítimas.
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