Os indígenas da Amazônia lançam um SOS para pedir proteção ante a pandemia
As primeiras mortes e o avanço dos contágios ativam os alarmes na região da fronteira tripartite
Indígenas com máscaras navegam pelo rio Ariaú, a 80 quilômetros de Manaus.RICARDO OLIVEIRA / AFP
Um território vasto e de selva, com uma população vulnerável, espalhada e majoritariamente indígena, redes hospitalares deficientes e sob a jurisdição de vários países. O coronavírus, que ataca com ferocidade o sistema respiratório, também põe em perigo os habitantes do chamado pulmão do mundo. A Amazônia, esse lugar remoto e biodiverso onde as mercadorias fluem pelos rios em vez de rodovias, acendeu os alertas das autoridades do Brasil, Colômbia e Peru ante o avanço da pandemia.
A covid-19 representa uma ameaça ainda mais grave para as comunidades indígenas,
historicamente dizimadas por epidemias levadas a elas pelo homem
branco. Seus defensores alertam para o risco de genocídio se nenhuma
medida for adotada. É por isso que os indígenas brasileiros pedemque a
Organização Mundial da Saúde crie um fundo especial de emergência para
protegê-los.
Os sinais de alarme proliferam no Brasil,
que acumula quase 8.000 mortes e 115.000 contagiados. A doença causou
seis mortes em aldeias de índios e chegou à cidade mais indígena do
país. Na semana passada foram detectadas as primeiras infecções em São
Gabriel da Cachoeira, na Amazônia, apesar de há um mês as autoridades
terem suspendido o transporte fluvial e aéreo para esta remota
localidade na fronteira com a Colômbia e a Venezuela. A tentativa de
isolá-la fracassou. Estes casos são especialmente relevantes porque 90%
dos moradores deste município, do tamanho da Bulgária, são indígenas,
mais vulneráveis à covid-19 do que os demais brasileiros. Embora tenha
um hospital administrado pelo Exército, a UTI mais próxima fica a 850
quilômetros de distância, em Manaus, a capital do Estado, duramente castigada pela pandemia.
Os leitos de UTI da cidade mais populosa da Amazônia estão saturados há
dias. O aumento das mortes obrigou à abertura de valas comuns.
“Fracassamos”, admitiu o prefeito Arthur Virgilio Neto, referindo-se ao
fato de a população não estar cumprindo a quarentena, ignorando suas
recomendações e do governador.
O fotógrafo Sebastião Salgado, imerso em um projeto monumental na Amazônia, conseguiu o apoio de dezenas de personalidades da cultura —de Ai Wei Wei a Meryl Streep e Pedro Almodovar—
para exigir das três instâncias de poder no Brasil medidas urgentes de
proteção. A Comissão Arns é uma entidade brasileira que pede o envio de
forças de segurança para impedir a invasão de terras indígenas e
expulsar aqueles que já estão nelas. A veterana antropóloga Manuela
Carneiro da Cunha, da Comissão Arns, explica em entrevista por telefone
que 23 povos indígenas vivem na região de São Gabriel da Cachoeira.
Observa que o primeiro yanomami a morrer de covid-19 era um adolescente de 15 anos
que “contraiu o vírus em terras invadidas por garimpeiros de ouro”, e
que o vírus poderia facilmente dizimar comunidades, como a malária
levada nos anos oitenta pelos garimpeiros às terras yanomamis.
Cunha
critica o fato de alguns grupos recentemente contatados que moram longe
dos rios terem que ir até as cidades para receber a ajuda do Bolsa
Família porque, diz ela, “as políticas públicas brasileiras nunca foram
adaptadas às pessoas que vivem de maneira diferente (da maioria), como
povos indígenas”. Ela insiste que "isso é perigosíssimo em uma situação
de pandemia, porque os recém-contatados ainda não têm defesas
imunológicas". A antropóloga destaca que "curiosamente copiamos uma
estratégia indígena", o isolamento, para enfrentar esta pandemia. Há
povos inteiros, conta, que se isolaram voluntariamente após experiências
traumáticas com garimpeiros ou invasores de territórios.
Também na Colômbia, as comunidades indígenas optaram por se isolar
em suas comunidades com medo de pegar o vírus. Bogotá, uma cidade
andina de mais de sete milhões de habitantes, continua sendo o epicentro
da covid-19, com mais de 3.000 dos quase 9.000 casos detectados no
país. Mas o distante Amazonas, com uma rede hospitalar precária, se
tornou o departamento colombiano com os mais recentes contágios. Depois
de passar mais de um mês sem casos detectados, em menos de duas semanas
chegaram a 230 positivos. Sua capital, Letícia, no extremo sul do mapa
em forma de losango do território colombiano, tem a maior taxa de
infecções do país.
A inquietação tomou conta de um
município que registra 13 mortes relacionadas à covid-19. Entre elas, um
rosto indígena bem conhecido, o de Antonio Bolívar, o ator de 75 anos
que interpretou Karamakate no premiado filme O Abraço da Serpente.
Seu personagem era o encarregado de guiar na selva um etnobotânico
estrangeiro que procurava uma planta milagrosa, na produção de Ciro
Guerra e Cristina Gallego, candidata ao Oscar em 2016.
Como
parte de sua resposta para conter o coronavírus, a Colômbia fechou
formalmente suas fronteiras desde 17 de março, mas os limites são
nebulosos na floresta amazônica. Leticia está localizada na tríplice
fronteira, onde a mobilidade constante dificulta a criação de barreiras.
Separada por uma rua da Tabatinga brasileira, são cidades siamesas com
uma troca comercial fluida, muito perto da ilha peruana de Santa Rosa.
Mercadorias e viajantes costumam chegar de Manaus, a grande cidade
amazônica.
O município colombiano, de 79.000 habitantes, possui apenas 68 leitos hospitalares, quatro de cuidados intermediários e nenhuma UTI.
Quando um paciente precisa de atendimento especializado, costuma ser
enviado de avião para Bogotá, a mais de mil quilômetros de distância.
Para agravar o panorama, há menos de um mês os funcionários do Hospital
San Rafael renunciaram a seus postos, alegando falta de garantias
trabalhistas e condições de segurança.
Essa
vulnerabilidade manifesta e histórica preocupa o Governo de Iván Duque.
Na Amazônia, “temos um foco que merece toda a nossa atenção”, declarou o
presidente em seu programa diário para tratar da pandemia. Ainda em
plena quarentena, o ministro da Saúde, Fernando Ruiz, visitou Letícia no
domingo. Lá, prometeu o envio de remédios, máscaras faciais, gel
antibacteriano e outros itens de higiene, bem como a entrega de
ventiladores e a contratação de pessoal de saúde. De todo modo, a
entrega depende da Força Aérea da Colômbia, que no final da semana
passada levou um laboratório móvel para testes de covid-19. O modelo
epidemiológico do Ministério prevê que, durante o próximo ano, metade da
população estará suscetível ao contágio, e a saúde das etnias indígenas
é uma das principais preocupações.
O panorama é
igualmente complexo no lado peruano da tríplice fronteira. Em
Caballococha, a localidade mais importante, morreram com sintomas de
covid-19, entre segunda e terça-feira, dois idosos e uma mulher --da
comunidade de Bellavista Callarúcom, de acordo com relato de Francisco
Hernández Cayetano, presidente da Federação das Comunidades ticuna
e yaguas do Baixo Amazonas. “Cerca de 3.000 pessoas vivem nessa
comunidade e só há uma pessoa atendendo no posto de saúde. A maioria tem
essa doença, mas não sabe porque não foram feitos testes, o posto de
saúde não tem nenhum medicamento”, denuncia em diálogo com este jornal.
Ele supõe que os três que morreram foram infectados quando viajaram para
a ilha de Santa Rosa para receber subsídios no banco.
Caballococha
faz parte da região de Loreto. Com 62 mortes e 1.500 dos mais de 50.000
casos detectados no Peru, concentra um grande número de povos indígenas
que não receberam atenção nem informações específicas do Estado para
enfrentar a pandemia. “Não sei a quem pedir apoio. Que se lembrem de nós
... eu me sinto impotente por causa de toda esta situação ”, diz o apu (chefe
indígena) Hernández Cayetano. Ele pede que enviem médicos até a
fronteira. "Aqui não temos como salvar quem fica doente", lamenta.
https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-05-01
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