Facebook cria órgão independente que decidirá o que seus usuários podem ver
Uma ganhadora do Nobel da Paz, uma ex-primeira-ministra dinamarquesa, um ex-diretor do ‘The Guardian’ e um professor da UERJ estão entre os membros do novo conselho moderador
O fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, no Congresso dos Estados Unidos, em outubro de 2019.Erin Scott / Reuters
O Facebook
anunciou a composição de um novo organismo que moderará conteúdos, uma
instância independente à qual os usuários e a própria companhia podem
recorrer para tomar decisões sobre publicações que afetam a liberdade de
expressão e os direitos humanos. Mark Zuckerberg,
fundador da rede social, anunciou em 2018 sua intenção de criar uma
entidade à margem da estrutura da empresa para moderar os conteúdos mais
polêmicos. O resultado é um conselho formado, até o momento, por 20
personalidades de todo o mundo, que selecionará e ponderará sobre os
limites globais da liberdade de expressão. Suas decisões serão
transparentes e de cumprimento obrigatório para a rede, desde que não
entrem em conflito com leis locais. Os conteúdos suscetíveis de serem
moderados serão os do Facebook e Instagram. O conselho não terá, ao menos por enquanto, capacidade sobre o WhatsApp, outra plataforma pertencente à companhia.
Esta
nova instância depende de uma organização alheia à empresa, embora
tenha sido criada pela matriz com uma doação irrevogável de 130 milhões
de dólares (800 milhões de reais). Os membros do conselho, composto por
10 mulheres e 10 homens, não são funcionários do Facebook nem podem ser
demitidos por Zuckerberg. Nesta quarta-feira, foi anunciada a composição
desse órgão, que incluirá personalidades como a ativista iemenita
Tawakul Kerman, ganhadora do Nobel da Paz de 2011, a
ex-primeira-ministra dinamarquesa Helle Thorning-Schmidt e o jornalista britânico Alan Rusbridger, que dirigiu o jornal The Guardian durante duas décadas. Ronaldo Lemos,
advogado de propriedade tecnológica e intelectual e professor de
Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é um dos dois
únicos latino-americanos da lista, ao lado da jurista colombiana Catalina Botero-Marino,
diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Los Andes e, entre
2008 e 2014, relatora para a liberdade de expressão na Organização dos
Estados Americanos.
O nome oficial é conselho assessor de conteúdo, ou oversight board,
e seus membros têm, sobretudo, perfis vinculados ao mundo do direito,
ao ativismo digital e aos meios de comunicação. Ao todo serão 40, o
dobro dos atuais, embora o processo de seleção deva se prolongar até
2021. O órgão tem quatro copresidentes, que são os que se encarregaram,
junto ao Facebook, de recrutar os outros 16 convidados. Além de
Botero-Marino e Thorning-Schmidt, os outros dois copresidentes serão os
norte-americanos Jamal Greene, catedrático da Universidade Columbia, e
Michael McConnell, ex-juiz federal dos EUA e hoje professor em Stanford.
“Isso
representa uma mudança fundamental quanto à forma como as decisões
difíceis são tomadas no Facebook”, disse Brent Harris, diretor de
Assuntos Globais da empresa, em uma entrevista coletiva para jornalistas
de todo o mundo, à qual o EL PAÍS assistiu e que teve a participação
dos quatro copresidentes e de Thomas Hughes, diretor-administrativo do
conselho. Embora sua fundação já seja oficial, só começará a analisar
casos dentro de alguns meses. Nas próximas semanas, e com as dificuldades acrescentadas pela pandemia, a instituição contratará pessoal e decidirá a melhor forma de se coordenar e trabalhar.
Outros encarregados
Com
esse conselho, a intenção da empresa é terceirizar um dos aspectos que
mais lhe causam problemas em seu trabalho: os limites à liberdade de
expressão dos usuários, levando em conta seus contextos nacionais. O
Facebook já transferiu a verificação rotineira de conteúdos para
organizações externas, que são as que assumem a avaliação sobre a
veracidade de determinada publicação. O Facebook então só acrescenta
esse veredicto ao conteúdo questionado e faz que essas mensagens sejam
menos visíveis nas contas dos outros usuários.
Com o novo tribunal supremo ocorrerá algo semelhante. As atribuições difíceis não ficarão nas mãos dos funcionários da companhia,
que assim se isolarão de decisões que frequentemente dependem de
sensibilidades ideológicas ou regionais. Os veredictos deliberados do
tribunal, que inclui gente muito diversificada, evitarão a sensação de
que um grupo de executivos em Palo Alto decide o que centenas de milhões
de pessoas veem ou deixam de ver. Por outro lado, o Facebook se
comprometeu publicamente a cumprir as decisões do conselho. “Se não
fizerem isso, o custo para a reputação seria muito alto”, disse
Botero-Marino.
“Não seremos a polícia da Internet”,
quis esclarecer McConnell. “Não será algo rápido, será mais uma corte
de recursos que delibera depois do fato. O objetivo é promover a
justiça, a neutralidade”, acrescentou. Serão três os critérios para
selecionar os casos entre os milhares que chegarão, segundo McConnell:
que afetem muita gente, que tenham muita importância por suas
consequências, ou que possam afetar as políticas do Facebook. “Não
haverá respostas corretas. Ninguém estará sempre satisfeito com nossas
decisões”, acrescentou. Como empresa privada, o Facebook pode decidir
sobre seu conteúdo. “O direito público vai por outro caminho”, explicou
McConnell.
Inicialmente, o tribunal verá casos
denunciados por usuários que tiveram conteúdo apagado pelo Facebook, mas
depois permitirá os recursos de usuários que queiram pedir que se
apague um conteúdo determinado. O conselho poderá decidir não só sobre
publicações, também sobre anúncios ou grupos. Poderá também recomendar
políticas ao Facebook baseadas nos veredictos.
“Sempre
estive comprometido com a liberdade de expressão e de pensamento, mas o
crescimento do Facebook criou novas oportunidades e desafios”, diz o
juiz húngaro András Sajo, ex-vice-presidente do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e um dos membros do conselho, numa mensagem de apresentação no site do organismo.
A rede social do mundo
Este
novo tribunal dará mais peso à imagem do Facebook como a grande rede
social do mundo. A metáfora que fala do Facebook como um país próprio
ganha agora um pouco mais de fundamento: já tem seu poder judiciário
independente. É difícil pensar em redes concorrentes que tenham a
capacidade de instituir organismos que incluam personalidades de tanto
nível e com capacidade de decisão real sobre os limites da liberdade de
expressão em lugares com tradições diferentes. O tribunal se centrará no
conteúdo do Facebook e Instagram, mas está aberto a assumir outras redes sociais, como o Twitter, conforme disse Thomas Hughes, seu diretor-administrativo.
O
conselho permitirá, segundo Botero-Marino, que os Estados pensem duas
vezes sobre a conveniência de regular a rede: “A melhor maneira de
manter a arquitetura atual da Internet e evitar a regulação de Estados é
que as companhias se autorregulem”, disse. “Este é um bom exemplo
porque inclui independência, transparência e diversidade."
“As
sociedades não podem funcionar se seus cidadãos não chegarem a um
acordo sobre que significa prova, fato e verdade”, diz Rusbridger em uma
mensagem na Internet. “Talvez tenhamos demorado demais para percebermos
isso. O conselho assessor de conteúdo parece ser o primeiro passo
ousado e imaginativo da parte de um dos principais atores para encontrar
um modo de conciliar a necessidade de impor algum tipo de padrão ou
julgamento do que é publicado, ao mesmo tempo em que mantêm as coisas
que são maravilhosas nas redes sociais e necessárias para a liberdade de expressão”, acrescenta.
Faltando ainda a definição de metade de seus membros, o conselho também tem lacunas. O Facebook não está presente na China,
então a única integrante de fala chinesa é a taiwanesa Katharine Chen,
catedrática de Comunicação na Universidade Nacional Chengchi. E a única
pessoa vinculada à Rússia é a camaronesa Julie Owono, diretora-executiva
da organização Internet Sem Fronteiras, que cresceu nesse país.
Há
também cinco membros norte-americanos contra apenas três europeus
(Sajo, Rusbridger e Thorning-Schmidt). Esse número de norte-americanos
se deve, segundo Harris, ao fato de que havia muitos candidatos de lá
que os impressionaram, e que a maioria dos casos mais polêmicos para a
rede começaram nesse país.
Ao menos por enquanto, os membros trabalharão em tempo parcial e
receberão uma compensação compatível “com os conselhos do setor
tecnológico”, segundo Hughes. O trabalho deste tribunal não tem em
princípio por que interferir na atuação dos verificadores de informação,
embora seja provável que eventualmente ocorram conflitos. Durante a pandemia do coronavírus,
a Espanha viveu uma polêmica substancial sobre a suposta censura nas
redes sociais, embora centrada sobretudo no aplicativo de mensagens
WhatsApp.
El País
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