Combinação de pandemia e governos autoritários no mundo é preocupante, diz Lilia Schwarcz



 
 


Bolsonaro em área externa, perto de carro, de onde se pode ver sinalizadores de viaturas

Direito de imagem EPA/Andre Borges
Image caption 'O nosso presidente tem atuado com claro negacionismo, tem incitado manifestações, tem tratado com desdém os protocolos da Organização Mundial da Saúde (OMS), quando não deturpa tais protocolos, e isso vai custar muito caro', afirma Schwarcz






Brasileiros usando máscaras pelas ruas, hospitais sobrecarregados recebendo equipamentos às pressas, atividades culturais canceladas.
Foi há mais de cem anos, mas a pandemia da gripe espanhola, que matou cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo entre 1918 e 1920, ainda traz lições que poderiam ser aproveitadas pelo Brasil no combate à covid-19.
Principalmente diante da postura "caótica e negacionista" do presidente Jair Bolsonaro diante da atual crise de saúde, afirma a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz.
"A partir do momento em que a gripe (espanhola) se instala, a atitude do governo brasileiro, de uma maneira geral, foi muito mais propositiva do que a nossa atitude agora. Não existia o ministro da Saúde, portanto as atitudes eram centralizadas na figura do presidente. E os presidentes no Brasil acabaram se transformando em líderes nesse sentido, assim como os cientistas", afirma, em entrevista concedida à BBC News Brasil no dia 28 de abril por meio de teleconferência.
Co-autora, com a historiadora Heloisa Starling, do livro Brasil: uma biografia, Schwarcz lançou há cerca de um ano o livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro, considerado a primeira reação impressa em forma de livro ao governo Bolsonaro.
 O  nosso presidente tem atuado com claro negacionismo, tem incitado manifestações, tem tratado com desdém os protocolos da Organização Mundial da Saúde, quando não deturpa tais protocolos, e isso vai custar muito caro, sobretudo em um país de marcada desigualdade social.
BBC News Brasil - No seu trabalho, principalmente para o livro Brasil: uma biografia, a senhora pesquisou bastante sobre a gripe espanhola. Em entrevista à BBC News Brasil, o médico Drauzio Varella, por exemplo, disse que não dá para comparar aquela pandemia com esta dos dias atuais. Mas existem lições ou comparações que dá para fazer sobre o que aconteceu com o Brasil naquela ocasião e agora?
Schwarcz - Eu acho que sim. A gripe espanhola é até hoje considerada e chamada a "mãe das pandemias". Matou de 20 a 50 milhões de pessoas e foi, de fato, uma pandemia porque afetou o mundo todo. Afetou as Américas, afetou a Europa, afetou a Ásia, os relatos falam de casos em todos os lugares. E afetou em três grandes ondas.
A primeira foi mais nos Estados Unidos, a segunda tomou a Europa e a terceira, o mundo todo. Foi uma gripe mais curta, ela começa em 1918 e em 1920 já são pouquíssimos os casos. Ela foi uma gripe que pegou a população mundial enfraquecida por conta da Primeira Guerra Mundial, que foi uma guerra muito sanguinolenta.
Encontrou soldados famintos, soldados exaustos, soldados exauridos. Então esses todos são contextos particulares da gripe espanhola.
No entanto, o que há de comum? O tipo de medida que foi adotada no combate à gripe espanhola. As pessoas usavam máscaras, os hospitais foram mais equipados, os teatros foram fechados. Os transportes públicos andavam mais esvaziados.
Enfim, essas medidas de quarentena foram tomadas em 1918 e 19, o que é muito interessante pra gente pensar.
Então, algumas lições: primeiro; as pandemias voltam, ou seja, elas vêm por ciclo. Isso faz parte da História. As pandemias vão se tornando às vezes mais violentas, ainda mais agressivas.
Outro ensinamento: é preciso aprender com as experiências dos outros países.
E é preciso aplicar essas experiências às especificidades do nosso próprio país. Isso nós não estamos fazendo.
BBC News Brasil - Na gripe espanhola o Brasil fez isso?
Schwarcz - Isso, a gripe espanhola chegou ao Brasil de navio (o navio Demerara, que veio da Europa com 72 passageiros), muito parecido com o nosso caso da covid-19, em que a doença chegou de avião. No caso da gripe espanhola de 18, o navio parou em Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Santos.
E ele veio contaminado, e a contaminação em um primeiro momento foi negada, os brasileiros achavam que a gripe espanhola nunca chegaria ao Brasil.
 Lilia Schwarcz em sua casaImage caption "Eu elogio e vejo com muita alegria esses novos governos, essas novas líderes mulheres, mas vejo com muita preocupação o enrijecimento do autoritarismo. A gente não pode esquecer que a pandemia pegou o mundo em um momento de uma nova onda autoritária", alerta a autora
Mas a partir do momento em que a gripe se instala, a atitude do governo brasileiro, a depender do Estado, mas de uma maneira geral, foi muito mais propositiva do que a nossa atitude agora.
Não existia o ministro da Saúde, portanto as atitudes eram centralizadas na figura do presidente da República. E os presidentes no Brasil acabaram se transformando em líderes nesse sentido, assim como os cientistas. Ganharam vulto pelo combate à gripe espanhola.
A gente teria muito o que aprender. Não é igual, eu concordo com o doutor Drauzio (Varella), porque os contextos são sempre distintos, mas as lições são boas de aprender. Mas a humanidade é teimosa, né? Não aprende.
BBC News Brasil - Fora todos os problemas, vê marcas ou impactos ou lições que vão ficar? Mudanças que teremos na sociedade depois da pandemia?
Schwarcz - Quem diz que sabe, em geral... nós não sabemos o que vai acontecer. Muita gente tem feito previsões bastante otimistas, de que sairemos diferentes.
Usando o que eu conheço de História eu acho que nunca se sai de uma crise dessas da mesma maneira. Mas também não se sai tão revolucionado como se imagina.
Eu tendo a dizer que eu sou, talvez, otimista no varejo e pessimista no atacado.
BBC News Brasil - Quero saber se a senhora está mais pessimista ou mais otimista.
Schwarcz - Não estou nenhum. Eu acho que a gente está em um momento em que a gente não pode dizer o que está. Eu acho que muita gente tem falado que as relações nas casas e no lar tem se alterado, se nós pegarmos as últimas pesquisas têm mostrado o contrário: que durante a quarentena, durante o isolamento, as mulheres profissionalizadas estão sendo muito mais prejudicadas do que os homens. Então eu discordo da ideia de que estamos revolucionando as relações de gênero dentro de casa.
Também penso que as pessoas não estão parando para olhar o que é uma casa e o que é um lar em uma sociedade tão desigual como o Brasil. Nós sabemos que 30% dos brasileiros vivem em casas com seis ou mais pessoas, e muitas dessas pessoas têm o seu espaço de sociabilidade na rua, não dentro das casas, onde não é possível a convivência entre todos.
Nós também sabemos que os números de violência doméstica estão aumentando, o número de violência contra as crianças está aumentando. De novo, quando você me pergunta você é mais otimista ou mais pessimista, eu digo: não sei. Acho que existem as duas coisas.
Existe uma classe média, uma classe média alta, que pode estar refletindo mais sobre a divisão do trabalho nas casas, mas existe uma classe de baixa renda que está sofrendo demais com a impossibilidade da quarentena.
A mesma questão vale para a gente pensar nos sistemas políticos. Nós acabamos de conversar que talvez a quarentena esteja mostrando novas dirigentes, novas líderes, líderes mulheres. No entanto, a pandemia também abre uma porta grande para governos mais autoritários.
O grande modelo é o modelo da Hungria, do (Viktor) Orbán, que dá um golpe em cima do golpe. Então uma coisa é nós falarmos que estamos vivendo estados de anomalia, de emergência. Mas isso não quer dizer que esses dirigentes têm o direito de usar esse estado de anomalia para dar um novo golpe de Estado.
Então, eu tenho muito medo, eu elogio e vejo com muita alegria esses novos governos, essas novas líderes mulheres, mas vejo com muita preocupação o enrijecimento do autoritarismo. A gente não pode esquecer que a pandemia pegou o mundo em um momento de uma nova onda autoritária.
Se a gripe espanhola pegou o mundo no contexto da Primeira Guerra Mundial, e teve consequências terríveis, vamos trazer agora para o nosso contexto. A pandemia está pegando o nosso mundo em um momento de crescimento de governos autoritários, nos Estados Unidos, em Israel, na Itália, na Hungria, que já citamos, e no Brasil.
Então, a pergunta é: o que a pandemia fará frente a líderes mundiais de raiz e matriz autoritária? Eu tenho muito receio.
BBC News Brasil - Na História do Brasil, já houve momentos tão desafiadores, difíceis de colocar em uma caixinha para análise? Como você vê este momento na biografia do Brasil?
Schwarcz - A biografia do Brasil eu escrevi junto com uma grande historiadora, a Heloísa Starling, e nós, na conclusão do livro, dizemos que o Brasil em vários momentos já se encontrou e se desencontrou. Ou melhor, já viveu muitas crises, mas achou boas soluções.
Eu gosto de citar o momento de grande crise que foi o momento em que Getúlio Vargas comete suicídio. É possível dizer que o povo na rua evitou, por alguns anos, a chegada da ditadura militar. Mas era um momento de tremendo caos político, de tremendo caos econômico, e talvez semelhante ao que nós vivemos agora.
Todas as testemunhas que participam de um momento tendem a achar que o seu momento é único. Porque faz parte da ideia da testemunha. Segundo a Hannah Arendt, a testemunha é aquela que fica para contar. E a gente só pode narrar aquilo que nós experimentamos. É por isso que o passado fica sempre mais longínquo nesses momentos.
Mas talvez essa experiência não seja tão única, talvez seja hora de a gente pensar em saídas de mais longo prazo, saídas que tornem mais forte a nossa democracia, ou seja, que a gente não adie o problema mas que gente enfrente cada vez de maneira forte. Enfim, todo momento é único, mas todo momento dialoga no momento da História, não é?
BBC

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