A dona de casa Nerci do Prado Martins, 52, não consegue mais entrar na residência onde passou a infância, dentro da reserva ecológica da Jureia, no litoral de São Paulo. Aliás, sequer sabe se seu imóvel ainda está de pé.
De origem caiçara, ela hoje mora com um dos filhos e o marido, que trabalha como caseiro, em um bairro urbano de Peruíbe, cidade litorânea próxima.
"A gente ainda tem uma casa de madeira lá dentro (da Jureia), mas faz mais de dois anos que a gente tenta autorização para consertá-la e não consegue. Já faz um tempo que nem vamos lá para ver como está. É capaz que já tenha caído tudo", conta. "Só tenho dois tios que continuam lá dentro da reserva."
O distanciamento dessa família de suas terras originais é um exemplo de como a tradicional cultura caiçara, catalogada oficialmente e ligada a séculos de ocupação no litoral brasileiro, está se perdendo, segundo especialistas.
Nerci perdeu o direito à casa e ao uso da área com a criação da reserva ecológica por parte do governo federal, ainda nos anos 1980, quando se planejava construir usinas nucleares no local.
"A gente não podia mais abrir roças, caçar ou retirar palmito. Só sobrou a pesca", diz ela. A ideia das usinas não prosperou, mas a região se tornou um parque de preservação ambiental.
Quem vive cercado
Caiçara é um termo de origem tupi, que faz referência a cercas que protegiam aldeias. Os caiçaras são descendentes de índios, de portugueses que chegaram ao Brasil a partir do século 16 e, em alguns casos, de negros trazidos ao país como escravos. Por viverem em áreas isoladas, acabaram preservando muito da cultura de seus antepassados, como o modo de produção, festas com músicas e danças próprias e o ritmo de vida.
Eles não têm, por exemplo, a cultura de acumulação. Além de indígenas e quilombolas, existem em território nacional outros povos tradicionais como faxinalenses, pomeranos, seringueiros, extrativistas, quebradeiras de coco babaçu e ciganos.
Hoje, o caiçara é alguém que vive cercado – por fronteiras naturais do mar e da serra, e por imposições como a industrialização de áreas pesqueiras, a especulação imobiliária e a criação de reservas florestais, outro obstáculo ao modo de vida tradicional.
Ainda que protejam a natureza, as reservas são vistas por alguns críticos como uma outra face da especulação imobiliária.
"Além de tirar os caiçaras de suas terras para a criação de condomínios, é preciso expulsá-los das reservas também, em nome do mito da natureza intocada?", questiona Antonio Carlos Diegues, coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras da USP (Nupaub-USP).
Ele critica "o conceito de reserva florestal que exclui o ser humano que vive dentro daquela região e faz uso sustentável daqueles bens naturais". Além da relação forte com o mar e rios que desembocam ali, os caiçaras ligam também seu modo de vida à caça, à coleta de produtos da floresta e à agricultura. Não há estimativas oficiais do tamanho dessa população.
Isolamento e cultura
O território tradicional dos caiçaras vai do litoral sul do Rio de Janeiro até o Paraná. Como o isolamento favorece a manutenção desses povos e suas tradições, a cultura tem mais força em regiões como o extremo sul e o norte do litoral paulista, isoladas por mais tempo do que as áreas que vivenciaram avanço da rede rodoviária, a exemplo das cidades ligadas à capital paulista pelo sistema Anchieta-Imigrantes (que começou a ser construído nos anos 1940) - antes, já havia a estrada velha de Santos e a ligação férrea da Santos-Jundiaí.
Com a urbanização, tradições culturais também correm o risco de se perder, como o fandango caiçara, música folclórica com viola e pandeiro tocada em rodas feitas em casa. É considerado patrimônio imaterial nacional desde 2012.
Nize, por exemplo, afastou-se das festas de fandango por conta de sua religião evangélica, mas seu marido ainda organiza as rodas.
Ao mesmo tempo, busca-se o reconhecimento oficial de outros aspectos típicos dessa cultura, como a canoa caiçara, feita a partir de um único tronco. Segundo o pesquisador Antonio Carlos Diegues, os saberes para sua construção incluem a escolha da árvore, o momento do corte e o ângulo certo de corte da madeira para a formação de cada uma das partes da embarcação.
Hoje, muitos dos antigos fabricantes caiçaras abandonaram a atividade em razão das dificuldades impostas, e a maioria dos pescadores usa embarcações de outros materiais.
Em nota, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente de São Paulo afirma que a preservação ambiental é prioritária em relação aos direitos culturais dos povos tradicionais e que a proteção da fauna e da flora beneficia a todos, inclusive os descendentes dos caiçaras.
O Ministério do Meio Ambiente, por sua vez, diz levar em consideração o papel dos povos tradicionais na conservação da natureza, como defendem os especialistas, e incentivar em caráter experimental o manejo em áreas de reservas de proteção integral.
Pesca
No antigo território caiçara, foram construídos diversos condomínios residenciais, mais de uma dezena de parques, estações ecológicas e áreas de proteção ambiental, além dos portos de São Sebastião e Santos, em São Paulo, e Paranaguá-Antonina, no Paraná, e da bacia de extração de petróleo e gás natural de Santos, a segunda em produção do país.
Em Santos, existem duas comunidades caiçaras, ambas longe da orla, na parte continental: Ilha Diana e Monte Cabrão. Outra comunidade, chamada Ilha Caraguatá, fica em Cubatão, cidade do litoral paulista que não tem praias.
As três têm em comum a área de pesca: o estuário de Santos, trecho de mar que fica atrás de Santos, São Vicente e Guarujá.
Nascido e criado em ilha Diana, Eduardo Hipólito Filho, 47, é da terceira geração de pescadores da sua família radicados lá. "Comecei a pescar aqui quando era criança, a gente ia num barco a remo pegar camarão", conta.
Hoje, segundo ele, dos cerca de 200 moradores da ilha, apenas cinco vivem exclusivamente da pesca. "Mas quem tem outra profissão pesca para complementar a renda, pois a maioria tem profissões simples, com remuneração baixa."
Eduardo afirma que a pesca está cada vez mais difícil. "O grande negócio que ainda há é a pesca do robalo, mas diminuiu muito a quantidade de peixes e frutos do mar aqui." O problema, segundo ele, está na qualidade da água, por causa das indústrias instaladas em Cubatão, e da movimentação de embarcações do porto de Santos, instalado no estuário.
Além de vender peixes e frutos do mar para entrepostos de Santos, Eduardo também fornece camarões de pequeno porte como isca na pesca esportiva. A rotina de pescador, segundo ele, não começa na saída para o mar.
"No dia anterior, eu estudo o mar para saber qual tipo de equipamento vou levar. Uma boa pescaria depende de acertar essa análise e sair com o equipamento correto para determinado tipo de presa e ir para o local certo capturá-la", diz.
Ele ressalta que a comunidade tem dificuldade de encontrar outras formas de sobrevivência. "A gente aqui não tem espaço para lavouras e sabe que a água não é boa para fazermos criações de frutos do mar em cativeiro", diz. As empresas próximas acabam contratando eles apenas em momentos específicos, para trabalhos pouco especializados e de curta duração.
Vagas informais
Adriano da Silva Alves, 72, tio de Eduardo, mantém seus laços com a cultura caiçara, mas desistiu da pesca para trabalhar em obras de infraestrutura das prefeituras locais.
Ele conta a pressão que faz junto aos prefeitos de Santos por melhorias na ilha Diana. Uma das principais demandas hoje é pela reconstrução da capela local.
"Estamos há alguns anos sem o cortejo marítimo de Bom Jesus de Iguape, porque o nosso padroeiro está sem sede", conta. "Os santos da nossa capela estão guardados nas casas dos moradores."
Na saída do estuário, do lado do Guarujá, o portuário Odair Marcelino, 74, também fala com saudades das festas profanas e religiosas que eram dadas na casa de seus avós, na praia do Góes. "Aqui sempre tinha as festas juninas, o reisado e na época da tainha (setembro). O pessoal tocava pandeiro, viola e rabeca."
Conhecida na cidade pelo apelido Pouca Farinha, a praia de Santa Cruz dos Navegantes, no Guarujá, é um dos pontos de acesso às terras caiçaras da região. Tem construções precárias, que se espalham até o mar.
Entre trabalhadores com funções menos qualificadas em Santos e Guarujá, a comunidade ainda tem aqueles que vivem da pesca, como Rodrigo Gianeta, de 40 anos, conhecido como Birigui.
"Meu pai era pescador aqui e saiu para o interior, onde nasci. Mas ele não se acostumou e voltamos quando eu tinha quatro anos. São 36 anos de Pouca Farinha", afirma Birigui.
Ele trabalha em pequenas embarcações que pescam camarão no mar aberto. "Na água, a gente sofre com a concorrência desleal de embarcações maiores, que passam vários dias em alto mar e pescam irregularmente na área destinada aos pequenos", diz.
Na época do defeso do camarão no litoral paulista (período em que é proibida a pesca do crustáceo na região para garantir sua reprodução), entre o começo de março e o fim de maio, Birigui recebe o salário mínimo do seguro-defeso, pago pelo governo, e complementa sua renda com pequenos serviços de pedreiro e pintor.
Isolamento do Guarujá
Apesar de ser próxima a Santos, a cidade do Guarujá tinha até os anos 1970, quando foi construída a rodovia Cônego Domenico Rangoni, a balsa como principal ligação com as outras cidades do litoral sul. Com isso, apesar da forte especulação imobiliária a partir de então, algumas comunidades tradicionais conseguiram se manter na orla.
Sãos os casos do Perequê e da Prainha Branca, ambas no norte da ilha. Assim como o Góes, a Prainha Branca também só tem acesso por meio de trilhas ou embarcações.
Em outras praias, a pesca com pequenas embarcações continua, apesar de os pescadores terem saído da orla. Uma das soluções para a venda de seus produtos foi a construção de mercados de pescados, como o da praia das Astúrias, inaugurado em 1999. Thainara Ricardo Bezerra, 22, trabalha ao lado do pai em um dos boxes de lá há 11 anos.
"Os nossos principais produtos aqui são a pescada branca e o camarão sete-barbas pescados na praia, mas a gente vende também peixes de outras regiões e importados, como o salmão, que compramos nos entrepostos", diz.
Para Diegues, da USP, além de lutarem para manter seus territórios tradicionais e seu modo de vida, os caiçaras ainda precisam vencer o preconceito.
Um exemplo desta marginalização ainda consta em alguns dicionários, que registram "sujeito ordinário, sem serventia", "malandro", vagabundo" e "bronco" como significados do termo caiçara.
BBC NEWS BRASIL
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