Recebi de uma amiga no Natal um presente bastante curioso: meu próprio best-seller.
Tech-Splaining for Dummies (algo como "Explicando a Tecnologia para Leigos", em tradução livre) traz meu nome e minha foto na capa, além do ótimo título e elogiosas resenhas.
Mas ele foi inteiramente escrito por inteligência artificial (IA), baseado em algumas informações simples sobre mim, fornecidas pela minha amiga Janet.
A leitura é interessante e inclui algumas partes muito engraçadas.
Mas o texto também inclui muitos rodeios. Ele parece uma mistura de um livro de autoajuda e uma série de episódios curiosos.
O livro imita meu estilo tagarela de escrever, mas também é um pouco repetitivo e muito prolixo.
A IA pode ter ido além das informações de Janet e coletado outros dados sobre mim.
Diversas frases começam com "como uma das principais jornalistas especializadas em tecnologia..." Pobre de mim! Aquilo pode ter sido copiado de alguma biografia online.
O livro também inclui repetidamente uma misteriosa alucinação sobre meu gato (na verdade, não tenho animais de estimação). E quase todas as páginas trazem uma metáfora — algumas são mais aleatórias do que outras.
Dezenas de empresas online oferecem serviços de redação de livros com IA. Meu livro veio da BookByAnyone.
Entrei em contato com o CEO (diretor-executivo) da empresa, Adir Mashiach, que vive em Israel.
Ele conta que já vendeu cerca de 150 mil livros personalizados, principalmente para os Estados Unidos, desde junho de 2024. Até então, ele compilava guias de viagem gerados por IA.
Uma cópia impressa do seu próprio best-seller com 240 páginas custa 26 libras (cerca de R$ 188). A empresa usa ferramentas próprias de IA para gerar os livros, baseados em um grande modelo de linguagem de código aberto.
Não vou pedir a você que compre meu livro. Na verdade, você não pode. Apenas Janet, sua criadora, pode encomendar outras cópias.
Atualmente, não existem limitações para que qualquer pessoa possa criar um livro em nome de alguém, incluindo celebridades — embora Mashiach afirme que existam proteções contra conteúdos abusivos.
Todos os livros contêm um aviso impresso, para esclarecer que aquela é uma obra de ficção, criada por IA, projetada "apenas para trazer humor e alegria".
Legalmente, os direitos autorais pertencem à empresa, mas Mashiach destaca que o produto pretende ser um "presente engraçado personalizado" e os livros não são vendidos para outros clientes.
Ele espera ampliar a oferta, ao gerar outros gêneros, como ficção científica e, talvez, um serviço autobiográfico.
A ideia é ser uma forma irreverente de IA de consumo, ao vender produtos gerados pelas máquinas para clientes humanos.
Mas ela também serve para deixar aterrorizadas pessoas como eu, que escrevem para viver.
Até porque o livro provavelmente levou menos de um minuto para ser produzido e, em algumas partes, certamente soa muito parecido comigo mesma.
![Os cantores Drake e The Weeknd](https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/640/cpsprodpb/5930/live/43918b00-e244-11ef-a319-fb4e7360c4ec.jpg.webp)
Músicos, escritores, artistas e atores de todo o mundo já manifestaram preocupação com o uso do seu trabalho para treinar ferramentas de IA generativa, destinadas a produzir conteúdos similares criados por eles próprios.
"Devemos falar abertamente — quando falamos sobre dados, aqui, na verdade queremos dizer trabalhos da vida de criadores humanos", destaca Ed Newton-Rex, fundador da organização Fairly Trained, que defende o respeito aos direitos autorais pelas empresas de inteligência artificial.
"São livros, artigos, fotos, obras de arte, discos... O principal objetivo do treinamento da IA é aprender como fazer alguma coisa e, depois fazer mais daquilo."
Em 2023, uma canção com as vozes dos cantores canadenses Drake e The Weeknd, geradas por IA, viralizou nas redes sociais até ser retirada das plataformas de streaming. Ela não foi criada por eles, nem tinha o consentimento dos artistas.
Mas a medida não impediu que o criador da faixa tentasse obter uma indicação para um prêmio Grammy. E, mesmo com os artistas falsos, a música continuou a ser extremamente popular.
"Não acho que deva ser proibido o uso de IA generativa para fins criativos, mas acredito que a IA generativa para estes propósitos que tenha sido treinada com base no trabalho das pessoas sem uma permissão deveria ser proibida", destaca Newton-Rex.
"A IA pode ser muito poderosa, mas vamos construí-la de forma ética e justa."
Algumas organizações do Reino Unido — incluindo a BBC — decidiram proibir os desenvolvedores de IA de coletar seu conteúdo online para fins de treinamento.
Outras preferiram colaborar. O jornal Financial Times, por exemplo, firmou parceria com a OpenAI, criadora do ChatGPT.
O governo britânico estuda reformular a legislação em voga, para permitir que os desenvolvedores de IA façam uso do conteúdo de criadores na internet para ajudar a treinar seus modelos, a menos que os donos dos direitos autorais decidam o contrário.
Ed Newton-Rex qualifica esta medida de "insanidade".
Ele destaca que a IA pode fazer avanços em áreas como a defesa, assistência médica e logística, sem se apropriar do trabalho de artistas, escritores e jornalistas.
"Tudo isso funciona automaticamente, sem alterar as leis de direitos autorais e sem destruir o sustento das pessoas criativas do país", defende ele.
A baronesa Beeban Kidron, membro independente da Câmara dos Lordes (a câmara alta do parlamento britânico), também é totalmente contrária à não aplicação da lei de direitos autorais para a inteligência artificial.
"As indústrias criativas são criadoras de riqueza, responsáveis por 2,4 milhões de empregos e muita alegria", declarou ela.
"O governo está prejudicando uma das suas indústrias mais ativas com base em uma vaga promessa de crescimento."
Kidron também atua como consultora do Instituto para a Ética em IA, da Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Um porta-voz do governo britânico declarou que "não será tomada nenhuma medida até que haja total confiança de que temos um plano prático que atenda a todos os nossos objetivos: aumentar o controle para os donos de direitos autorais e ajudá-los a licenciar seu conteúdo, oferecer acesso a material de alta qualidade para treinar os principais modelos de IA do Reino Unido e criar maior transparência para os donos de direitos autorais, por parte dos desenvolvedores de IA".
Segundo o novo plano de IA do governo britânico, será disponibilizada uma biblioteca nacional de dados, com dados públicos de uma ampla variedade de fontes, para os pesquisadores da inteligência artificial.
![Capa do livro que foi escrito por IA](https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/640/cpsprodpb/fbb2/live/8acdc790-e244-11ef-80e7-5f5ddfb3e398.jpg.webp)
Nos Estados Unidos, o futuro das normas federais de controle da IA, no momento, é incerto, após o retorno de Donald Trump à presidência do país.
Em 2023, o ex-presidente Joe Biden assinou uma ordem executiva, destinada a ampliar a segurança da inteligência artificial.
Entre outros pontos, as empresas do setor foram obrigadas a informar ao governo americano os detalhes dos trabalhos dos seus sistemas antes da publicação.
Mas Trump revogou esta medida e ainda não está claro o que ele irá fazer para substituí-la. O que se afirma é que Trump deseja menos regulamentação para o setor de IA.
Esta incerteza surge em um momento em que existem diversas ações judiciais contra as empresas de inteligência artificial, particularmente a OpenAI.
Elas vêm de diversas partes, como o jornal The New York Times, escritores, gravadoras e até um comediante.
Eles defendem que as empresas de IA desrespeitaram a lei quando retiraram seu conteúdo da internet sem autorização e o usaram para treinar seus sistemas.
As empresas de IA argumentam que suas ações se enquadram dentro do conceito de fair use (uso aceitável) e, portanto, são legais.
Existem diversos fatores que podem constituir fair use e não há uma definição precisa. Mas o setor de inteligência artificial está sob vigilância cada vez maior em relação à forma de coleta dos dados de treinamento — e se as empresas deveriam pagar por esses dados.
E, como se tudo isso já não bastasse, veio a empresa chinesa de IA DeepSeek e abalou completamente o setor no final de janeiro. Seu aplicativo passou a ser o mais baixado da loja americana da Apple.
A DeepSeek declarou que desenvolveu sua tecnologia com uma fração do investimento usado pelas ferramentas semelhantes da OpenAI. Seu sucesso gerou preocupações de segurança nos Estados Unidos e temores sobre a atual dominação americana do setor.
Quanto a mim e à minha carreira de escritora, acho que, no momento, se eu realmente quisesse ter um best-seller, precisaria escrevê-lo eu mesma.
De qualquer forma, Tech-Splaining for Dummies destaca a fraqueza atual das ferramentas de IA generativa para projetos maiores.
O livro é repleto de imprecisões e alucinações — e sua leitura pode ser bastante difícil em alguns trechos, já que ele é muito prolixo.
Mas, considerando a rapidez da evolução tecnológica, não sei ao certo por quanto tempo posso manter a confiança de que meus conhecimentos humanos de redação e edição, mesmo que consideravelmente mais lentos, ainda são melhores do que a inteligência artificial.
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