As lágrimas surgem nos primeiros minutos de conversa. "Não passa um dia sem que eu me lembre de 17 de julho de 2007. Naquela noite, o chão desapareceu sob os meus pés", diz Joice Vinholes Oliveira, de 58 anos.
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Foi a última vez que ela se despediu do marido. O engenheiro eletricista Fernando Antonio Laroque Oliveira, então com 54 anos, foi uma das 199 vítimas da maior tragédia da aviação comercial brasileira: o pouso malsucedido de um Airbus da TAM no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, e o consequente choque contra um prédio da empresa.
Embora a família vivesse em São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre, Fernando trabalhava em Linhares, litoral norte do Espírito Santo. Viajava para lá religiosamente às segundas-feiras.
Naquela semana, no entanto, havia ganhado um dia a mais de folga. Inquieto, aproveitou para consertar o sistema de água quente de casa. "Ele estava sempre fazendo alguma coisa. Entendia tudo de construção", relembra a mulher.
No dia da viagem, terça-feira, a família almoçou reunida: à mesa estavam o casal e as filhas Fernanda, então com 18 anos, e Renata, 16. O pai ainda teve tempo para um cochilo antes de sair.
A mulher lembra do marido se aprontando. Ele trocou a camisa vermelha listrada por uma quadriculada. Depois vestiu uma calça jeans, cinto de couro, meias pretas e sapatos Samello.
Acometida pela lembrança, Joice vai às lágrimas novamente. Ao retomar as palavras, explica que os restos mortais de Fernando só foram identificados por exame de DNA.
ROBSON PANDOLFI/BBC BRASILTempestade perfeita
Os meteorologistas costumam usar a expressão "tempestade perfeita" para se referir a uma cadeia peculiar de fatores que resultam em eventos climáticos extremos. Na aviação acontece algo parecido.
"Os acidentes aéreos dificilmente ocorrem por uma única razão, e sim por uma sucessão de fatores", explica Adriano Castanho, comandante e diretor do Sindicato dos Aeronautas (SNA). "Com o 3054, não foi diferente."
Em 17 de julho de 2007, o voo JJ 3054 - que partiu do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, com destino a Congonhas - era operado pelo Airbus A320-233 de prefixo PR-MBK.
Fazia quatro dias que a aeronave voava sem um dos reversores, mecanismo que inverte o fluxo de ar nas turbinas e ajuda na frenagem do avião.
Nesses casos, os pilotos, próximos de tocar em solo, devem reduzir os manetes da posição equivalente a "aceleração" para "ponto morto".
Em seguida, já no chão, puxam os manetes dos dois motores para "reverso" (ignorando que um deles está desabilitado). O procedimento aciona automaticamente os spoilers (flaps que se abrem no pouso "empurrando" o avião para baixo) e os autobrakes (freios).
Num dia normal, voar com um reverso inoperante - ou "pinado", no jargão dos aviadores - não chegaria a ser um grande problema. Mas aquele estava longe de ser um dia normal.
À época, o Brasil vivia um "apagão aéreo". A crise era um desdobramento do protesto dos controladores de voo contra a infraestrutura de serviço, gerando atrasos, cancelamentos e desgastando os funcionários física e psicologicamente.
Era um caos. Como se não bastasse, os funcionários da TAM relatavam uma pressão informal da companhia para que planos de voo fossem rigorosamente cumpridos. Os pilotos eram incentivados a não arremeter nem voar para aeroportos alternativos - pelo custo e pelo efeito cascata que isso gerava na malha aérea.
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Além disso, dois comandantes operavam a aeronave: o capitão Kleyber Aguiar Lima, de 54 anos, com 2.236 horas de voo no modelo A320; e o copiloto Henrique Stephanini di Sacco, de 52 anos, com vasta experiência em Boeings, mas apenas 237 horas de voo no Airbus.
Voar com dois comandantes não é (e nunca foi) recomendável. Mas, em 2007, a escassez de copilotos no mercado era tanta que a TAM teve de contratar ex-comandantes para a função.
Reverso pinado, apagão aéreo, pressão da empresa, voo com dois comandantes: fatores assim já conspiravam contra o voo 3054. Só que havia mais.
A aeronave estava bastante pesada naquele dia. Antes de embarcar em Porto Alegre, o A320 recebeu 2,4 toneladas de querosene a mais do que o necessário para o percurso até São Paulo.
O chamado "abastecimento econômico" acontecia porque, naquela época, a alíquota de ICMS sobre combustível era menor no Rio Grande do Sul (17%) do que em terras paulistas (25%).
Com o tanque cheio, a aeronave exigia 50 metros de pista ao procedimento de aterrissagem, já que precisava de maior velocidade para se manter no ar. Isso em Congonhas, cuja pista principal possui 1.925 metros - metade do que a principal pista do aeroporto do Galeão, no Rio, por exemplo.
Os pilotos também estavam preocupados com a chuva torrencial verificada naquela semana. Não à toa: por acúmulo de água na pista, pelo menos quatro aviões haviam derrapado no último ano em Congonhas.
Esse e outros problemas levaram a Infraero realizar um recapeamento na pista, que começou em 14 de maio de 2007 e teve a primeira etapa concluída um mês e meio depois, em 29 de junho.
A segunda fase começaria dali a 30 dias. Nela, seria aplicado o grooving - ranhuras que produzem maior atrito entre as rodas e o chão e ajudam a escoar a água, evitando derrapagens.
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Na segunda-feira, 16 de julho, véspera do acidente, um bimotor turboélice da empresa Pantanal aquaplanou na pista principal e invadiu o gramado do aeroporto. Ninguém se feriu, mas a desconfiança voltou a assombrar Congonhas.
Na terça-feira, às 17h04, o comandante de um voo da Gol, que acabara de aterrissar, informou "pista escorregadia" à torre. Os pousos e decolagens chegaram a ser suspensos para a inspeção do pavimento e foram retomados logo após a aprovação técnica - por volta das 17h20, instantes depois de o JJ 3054 decolar de Porto Alegre.
Descida fatal
A psicoterapeuta Elisabete Vanzin, então com 47 anos, tinha um sonho: voar na cabine de um jato comercial ao lado do filho. Vinicius Costa Coelho, 24, era copiloto da TAM havia quase três anos quando, em junho de 2007, o desejo finalmente se tornara realidade - numa viagem a Buenos Aires.
"Duas semanas depois, minha vida virou um pesadelo", recorda ela.
Na terça-feira, 17 de julho, Vinicius saiu de Porto Alegre, onde morava, e tomou o primeiro avião com lugar disponível a fim de cumprir, naquela noite, a escala como copiloto de um voo de Congonhas para o Nordeste.
Vinicius embarcou como um dos 181 passageiros do JJ 3054. Seis tripulantes, incluindo os pilotos, operavam o voo. No total, 187 pessoas partiram a bordo do A320.
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Aos 40 minutos de voo e com metade do trajeto percorrido, a tripulação recebeu um novo alerta a respeito da escorregadiça pista de Congonhas. O mais lógico, diante das condições, seria desviar para o aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, distante 31 quilômetros do plano original.
Mas a inconveniência para os passageiros e tripulantes em época de apagão aéreo, e sobretudo a pressão da empresa em evitar outros aeródromos, fizeram Lima e Di Sacco seguirem o programado.
O procedimento de aproximação foi realizado sem anormalidades e, às 18h54, o avião tocou o solo de Congonhas.
Em vez de desacelerar, porém, a aeronave seguiu em alta velocidade - para desespero dos pilotos.
O motor 2, à esquerda, desacelerava conforme o comando do cockpit - o manete puxado para "reverso". Entretanto, o manete oposto, que manejava o motor com reverso pinado, manteve-se na posição "aceleração" quando deveria estar em ponto morto.
"Desacelera, desacelera", insistiu o copiloto Di Sacco, ao notar a velocidade da aeronave.
"Não dá, não dá", rebateu o comandante Lima.
Com uma turbina girando para frente e outra para trás, o JJ 3054 se desgovernou: guinou à esquerda no último terço da pista, deslizou sobre o gramado, avançou contra um muro, cruzou a avenida Washington Luís e se chocou a uma velocidade de 178 quilômetros por hora contra um posto de gasolina e o prédio da TAM Express.
Todos as 187 pessoas a bordo morreram, além de 12 outras em solo.
AGÊNCIA BRASIL/ARQUIVOO mistério do manete
Embora vários fatores possam ter conspirado, o determinante para a tragédia foi a posição errada do manete. Mas por que a alavanca manteve-se acelerada quando deveria estar freando?
O Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), vinculado à Aeronáutica, sugeriu duas hipóteses: falha humana ou falha mecânica.
No caso da última, a haste que transmite o comando do manete para o computador do avião pode ter quebrado e impedido a efetividade da troca "aceleração" para "ponto morto". Assim, o software pode ter interpretado que a aeronave arremeteria e não acionou os flaps. Tampouco os freios do lado direito.
A falha do piloto, no entanto, é mais difundida - embora muitos especialistas relutem em acreditar que um comandante experiente possa ter cometido o erro primário de "esquecer" o manete em aceleração durante o pouso.
"É algo até antinatural. É preciso erguer os dedos (mínimo e anelar) para puxar apenas um dos manetes", explica, diante de um simulador, o ex-comandante e professor de Ciências Aeronáuticas da PUC-RS, Claudio Roberto Scherer.
Pode até ser. Contudo, antes da fatalidade com o A320 da TAM, pelo menos duas outras aeronaves do mesmo modelo haviam aterrissado da mesma maneira - com os manetes trocados por erro dos pilotos.
Os casos aconteceram em 1998 nas Filipinas, com a Philippine Airlines, e em 2004, em Taiwan, com a Transasia Airways. Só não viraram tragédias porque as pistas tinham áreas de escape.
No caso do 3054, parar naquela condição de manete trocado exigiria, no mínimo, mais 800 metros à frente e 200 metros à esquerda da pista.
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A justificativa mais plausível para a falha do comandante Lima sugere que ele possa ter utilizado uma técnica de aterrisagem diferente da qual estava habituado.
"É possível que o comandante tenha tentado um procedimento antigo de puxar os dois manetes para posição neutra e depois apenas o operante para reverso. Nisso, pode ter esquecido de reduzir o motor direito depois do toque na pista", cogita o coronel Fernando Silva Alves de Camargo, investigador encarregado da ocorrência.
Mudança de procedimentos
A investigação gerou um total de 83 recomendações de segurança. As sugestões foram distribuídas entre a Organização Internacional da Aviação Civil, a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), o aeroporto de Congonhas, a Airbus e a TAM. Boa parte das recomendações foi atendida, segundo o coronel Camargo.
Uma das mudanças foi a instalação de um dispositivo de luzes e avisos sonoros para alertar pilotos sobre um eventual erro de posição de manetes.
À época da tragédia, a Airbus já tinha o produto desenvolvido, mas não havia obrigado a adoção da peça - porque, se assim fizesse, a fabricante deveria arcar com os custos do recall. Dessa forma, limitou-se a "sugerir" o novo equipamento às companhias que voavam com os seus A320.
Até julho de 2007, a TAM não havia instalado o dispositivo. Só o fez após da tragédia.
REPRODUÇÃO/CENIPA
Procurada pela reportagem da BBC Brasil, a Latam, resultado da união entre as empresas LAN e TAM, preferiu manifestar-se por meio de nota.
A empresa expressou solidariedade "com todos aqueles que foram afetados por este trágico acidente", e afirmou ter adotado todas as 24 recomendações de segurança apontadas pelo Cenipa.
Questionada sobre quais recomendações eram essas, a empresa respondeu uma semana depois. E aí afirmou que, entre elas, estavam o aperfeiçoamento do sistema de informe para situações de risco, o reforço do procedimento adequado para casos de aeronave com reverso pinado e a padronização de treinamento aplicado a pilotos para que estejam habilitados a eventualmente atuar como copilotos.
"Além disso, inovações puderam ser promovidas conforme novas tecnologias e regulamentações foram criadas", encerrou a nota.
O voo de Porto Alegre a São Paulo, antes denominado JJ 3054, agora é designado como JJ 3046.
O maior acidente da aviação no Brasil
Tragédia com voo da TAM em 2007 impactou vidas e o setor no país
199
vítimas, sendo 181 passageiros, 6 tripulantes e 12 em solo
- 17h19 partida de Porto Alegre
- 18h54 pouso em São Paulo
- 122 páginas do relatório que investigou o acidente
- 83 recomendações de segurança a órgãos de aviação e empresas
AFP/Getty
As coisas também mudaram em Congonhas - a começar pelo nome, que neste ano foi trocado para aeroporto Deputado Freitas Nobre. Agora, há uma área de escape e a operação sem o grooving na pista é proibida. Também foram adotados critérios específicos, como limite de peso para pousos e proibição de aterrissagens com o reverso travado.
"É da natureza do nosso trabalho tirar lições de situações ruins", afirma o coronel Camargo, do Cenipa. "Esse acidente ajudou a melhorar o nível de segurança da aviação."
A Anac flexibilizou normas que, desde o acidente, travavam o crescimento do aeroporto, que vem registrando alta na movimentação anual de passageiros ao menos desde 2012 - bateu 20,8 milhões de pessoas em 2016, um recorde.
PAULO PINTO/FOTOS PÚBLICASFeridas
Dez anos depois, o maior acidente aéreo da história brasileira segue vivo na lembrança de quem perdeu amigos e familiares na tragédia. Apoiando-se mutuamente, os parentes criaram uma associação: a Afavitam.
A organização é presidida por Dário Scott, de 54 anos, pai de Thaís Volpi Scott, morta no acidente e que hoje estaria com 24 anos. A menina viajava no JJ 3054 acompanhada de uma amiga para passar as férias na casa dos avós.
Para minimizar a dor da perda, Dário se dedicou exclusivamente à associação. Além disso, ele e a mulher, Ana Volpi Scott, de 58 anos, arriscaram, seis anos atrás, um processo de inseminação artificial para terem mais filhos. Deu certo. Hoje, o casal é pai dos gêmeos Tomás e Anna Beatriz.
"Só que me sinto um pai-avô", ele ri, resignado. "Já não tenho o mesmo pique de antigamente."
Elisabete Vanzin, mãe do copiloto Vinicius, só superou uma severa depressão em 2013, seis anos depois do acidente.
"É muito difícil", sintetiza, sobre a saudade do filho. "Eu convivo com uma faca no peito que às vezes se mexe e dói."
Espírita, Elisabete diz receber mensagens do filho com regularidade.
Ela lê uma das cartas em voz alta: "Não diga que estou bem só para te consolar, estou bem mesmo, e, à medida que sua fé aumentar, irá sofrer cada vez menos, te amo, mamãe, e a todos os meus afetos e familiares. Até...".
"Quando ele assina Até..., qualquer bilhete do Vinícius era assim", diz.
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Joice Vinholes Oliveira, viúva do engenheiro Fernando, seguiu a vida pelas filhas. É verdade que não foi fácil: precisou enfrentar, e vencer, um câncer no caminho.
No mesmo apartamento onde vivia com Fernando, Joice espalhou fotos do marido. Em uma delas, em que ela o beija no rosto, escreveu a seguinte mensagem: "Agora só te beijo nos meus sonhos".
A camisa vermelha listrada que Fernando vestia na hora do último almoço ainda está guardada, sem nunca ter sido lavada ou passada. "Até a dobra da manga foi mantida", diz Joice.
"O tempo passa, mas a saudade é constante", acrescenta.
Sentada ao lado da filha mais velha, Renata, Joice se queixa da Justiça. Em junho deste ano, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) manteve a primeira decisão de 2015 de absolver os três acusados em um processo que cobrava a responsabilidade criminal pelo acidente com o Airbus da TAM.
Respondiam o processo Denise Abreu, então diretora da Anac; Alberto Fajerman, ex-vice-presidente de operações da TAM; e Marco Aurélio dos Santos de Miranda e Castro, ex-diretor de segurança de voo da empresa.
O Ministério Público havia pedido a prisão dos três por entender que todos assumiram o risco de expor ao perigo as aeronaves que operavam em Congonhas.
Os desembargadores discordaram, entendendo que não há provas suficientes para que uma ação direta deles tenha contribuído para a tragédia que matou 199 pessoas. Ainda cabe recurso da decisão às instâncias superiores.
ROBSON PANDOLFI/BBC BRASIL
Presidente da Afavitam, Dário Scott diz acreditar que uma absolvição mantida em segunda instância dificilmente será revertida.
Entretanto, a opção de recorrer ou não só será definida durante o ato que marcará os dez anos do acidente em São Paulo, no domingo, 15 de julho, na praça Memorial 17 de Julho - inaugurada cinco anos depois, no local da tragédia.
"Acho que o culpado foi eu que escolhi mal a companhia aérea e o aeroporto para onde mandei minha filha", lamenta Dário.
"Agora me resta essa pena perpétua de nunca mais poder abraçá-la", conclui.
Imagens: Robson Pandolfi/BBC Brasil, Fotos Públicas, Agência Brasil e Cenipa
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