Na função “da mãe preta e babá”, reconta a linguista, essas mulheres amamentaram e criaram os filhos do colonizador “e, à maneira de pedagoga, os ensinou a balbuciar as primeiras palavras, também na sua língua nativa, no embalo do seu canto de acalento” que os fazia dormir.

A própria palavra babá é uma das muitas marcas deixadas por esse importante trabalho: pesquisadores rastreiam a sua origem no quimbundo, uma das línguas bantas faladas em Angola.

Da mesma forma, várias outras palavras ligadas ao cuidado e à maternidade também foram inseridas no contexto brasileiro por esse meio.

“No campo afetivo, a mãe negra nos deixou o xodó, o cafuné, o cochilo, o dengo, e nos falou que ‘o caçula é o dengo da família’, o irmão mais jovem, sempre tratado com muito mimo por todas da casa”, diz Yeda Pessoa de Castro.

Enquanto dengo vem do quicongo, falada no norte de Angola e no baixo Congo, caçula tem origem no quimbundo. Não há no Brasil outra palavra para se referir ao filho mais novo. No português europeu diz-se benjamin, que para o falante brasileiro, além de nome próprio, é um adaptador multiplicador de tomada elétrica.

“Diante de tantas evidências apontadas pelo vocabulário, entre muitas outras ainda encobertas por falta de pesquisas mais detalhadas nesse domínio, a mulher angolana, entre tantas outras mulheres negras de igual valor, é projetada historicamente como a figura emblemática da grande mãe ancestral dos brasileiros. Não é em vão que Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, é apresentada como uma santa negra!.”

Exemplos de expressões de origem banta

1. Babá

Tem origem na língua quimbundo e vem do verbo ‘kubaba’, que significa ‘acalentar ou embalar uma criança para adormecer’.

2. Cafuné

Tem origem no quimbundo e vem da palavra ‘kafa’, que se refere à ação de bater, estalar com os dedos

3. Cochilo

Tem origem no quimbundo e vem da palavra ‘kukoshila’.

4. Dengo

Tem origem no quicongo e, na língua original, quer dizer um pedido de aconchego.

5. Caçula

Vem de 'kasule', do quimbundo, que significa 'último filho'.

6. Moleque

Tem origem no quimbundo e vem da forma ‘muleke’, associado com 'menino'.

7. Xingar

Tem origem no quimbundo e na palavra ‘kukoshinga’.

8. Moringa

Tem origem no quimbundo e vem da palavra ‘mudingi’.

Escravos trabalham em uma plantação de café no Brasil

Crédito,The New York Public Library

Legenda da foto,Escravos trabalham em uma plantação de café no Brasil

9. Caçamba

Tem origem no quimbundo e vem da palavra ‘kasambu’ que significa cesto.

10. Capenga

Tem origem no quimbundo e na palavra ‘kiapenga’.

11. Dendê

Do quimbundo ‘ndende’, o dendê, ou óleo de palma, é popular nas culinárias africana e brasileira.

12. Marimbondo

Do quimbundo, vem de ‘madimbindo’, palavra usada para vespa.

13. Lenga-lenga

Tem origem no quimbundo e em ‘ku langa’, que significa enganar alguém.

14. Beleléu

Do quimbundo, vem de ‘mbelele’, palavra usada para se referir à morte.

15. Bunda

Do quimbundo, vem de ‘mbunda’, palavra usada para se referir a nádegas ou ânus.

As línguas bantas e o português

Fundamental para a construção do Brasil e para o movimento abolicionista, a cultura banto reverbera até hoje não só no vocabulário do português brasileiro, mas também na entonação, pronúncia e sintaxe.

‘Bantu’ é a forma como a língua é referida nos próprios idiomas locais. No Brasil, porém, os linguistas tendem a falar em línguas bantas para se referir ao conjunto de línguas.

Margarida Petter, linguista e professora aposentada do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo (USP), explica que a denominação foi adotada por linguistas a partir da percepção de uma característica comum entre muitas das línguas: a palavra ‘pessoa’ tem sempre o uso da raiz ‘-ntu’, que no plural recebe o prefixo ‘ba-’. Daí surgiu bantu.

“Alguns africanos que foram transplantados para o Brasil já falavam alguma coisa de português por conta do contato com os colonizadores na região no entorno do Reino do Congo”, diz.

Ao mesmo tempo, diz a especialista, ao aprender a língua estrangeira, essas populações impuseram algo da gramática, da sonoridade e do vocabulário de suas línguas nativas. “Eles trouxeram para o português palavras e estruturas de suas línguas bantas”, explica Petter.

Construções como "algumas lojas estão caindo preço" ou "as ruas do centro não estão passando ônibus", que são consideradas gramaticalmente incorretas na língua culta pelo uso equivocado do sujeito, são exemplos dessa influência na língua falada, diz a linguista.

Mapa das línguas da família banta

“Outra influência é a tendência na língua falada de dizer coisas como ‘as menina bonita’”, diz Margarida Petter. “Nas línguas bantas, o plural não é indicado com a letra ‘s’ no final das palavras, como no português, mas sim com o uso de um prefixo.”

“Para o falante da língua banta, apenas colocar o primeiro elemento no plural já seria suficiente para entender o sentido completo — colocar o ‘s’ no final do substantivo seria uma redundância.”

A influência banta no Brasil também está nas religiões, nas músicas e na dança. Os escravizados traficados para o país deixaram seu legado, por exemplo, na origem de ritmos e expressões musicais como o samba, o maracatu, a congada, o jongo e a capoeira.

Para Yeda Pessoa de Castro, a cantiga popular Escravos de Jó também seria mais uma marca dos bantos — e das mulheres que cantavam e ensinavam jogos para os filhos dos colonizadores.

Segundo a pesquisadora, a palavra ‘jó’ poderia ter origem na língua quimbundo e na palavra ‘njo’, que significa ‘casa’. Já o ‘caxangá’ era um jogo de tabuleiro, diz.

De acordo com Castro, as denominações candomblé, macumba e catimbó são também de origem banto e representam provavelmente as mais antigas manifestações de religiosidade afro-brasileira nascidas na escravidão, como consequência do contato de orientações religiosas ameríndias e africanas com o catolicismo nos primórdios da colonização.

Pintura do século 19 mostra escravizadas trabalhando

Crédito,Arquivo Nacional

Legenda da foto,Pintura do século 19 mostra escravizadas trabalhando

Na África colonizada por Portugal, os governos de países como Angola, Moçambique e Cabo Verde adotaram o português como língua oficial após sua independência na década de 1970.

“Havia uma diversidade linguística muito grande, então decidiu-se adotar o português também para evitar contendas tribais”, explica Alexandre António Timbane, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.

As línguas locais, porém, continuaram a ser usadas em contextos informais e no seio das famílias.

“As pessoas começaram a aprender o português para conseguir emprego, resolver questões burocráticas em órgãos do governo. Mas as línguas locais continuaram a ser faladas em contextos informais, nas famílias, nas canções e na educação local também”, diz Timbane.

O pesquisador moçambicano, porém, lamenta que ainda exista preconceito fora da África em relação às variedades do português africano, especialmente na área do ensino.

“A minha variedade, o meu sotaque, são influências da minha língua materna, da minha história”, diz. “Temos que considerar e tolerar sem preconceito linguístico todas as variedades e incentivar estudos e pesquisas sobre elas, porque elas são úteis.”