Crédito, Kew Science Legenda da foto, Caruru cresce espontaneamente em jardins e canteiros agrícolas de todo o Brasil.
Professor
do Instituto Federal do Amazonas (Ifam) em Manaus, o botânico Valdely
Kinupp diz à BBC que 90% do alimento mundial hoje vem de 20 tipos de
plantas - embora se estime que até 30 mil espécies vegetais tenham
partes comestíveis.
Os
números soam ainda mais paradoxais no Brasil, país que abriga entre 15%
e 20% das espécies vegetais do planeta, mas alimenta a maior parte de
sua população com o mesmo cardápio limitado - e majoritariamente
estrangeiro.
São
estrangeiros quase todos os principais produtos agrícolas do país, como
a soja (China), o milho (México), a cana-de-açúcar (Nova Guiné), o café
(Etiópia), a laranja (China), o arroz (Filipinas) e a batata (Andes).
Entre
as raras plantas que fizeram o caminho inverso, saindo do Brasil para
ganhar outras partes do mundo, estão a mandioca, o cacau e o amendoim.
"É muito pouco", diz Kinupp. "Vivemos um imperialismo
agroalimentar.
Legenda da foto, Presença de buriti em paisagens costuma indicar a existência de algum curso d'água.
No
livro "Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil", que
Kinupp lançou com o colega botânico Harri Lorenzi em 2014, são listadas
351 espécies alimentícias "subutilizadas, mal conhecidas e
negligenciadas" pela população brasileira.
Muitas
delas são nativas; outras, espécies exóticas já naturalizadas e
aclimatadas ao país. Várias são conhecidas por uma série de nomes
populares distintos (para evitar confusão, listamos no fim desta
reportagem os nomes científicos das principais espécies citadas nesta
reportagem).
Kinupp é um dos principais líderes no Brasil de um movimento pela valorização das PANC, o acrônimo que batiza seu livro.
Legenda da foto, Agricultura de larga escala costuma desprezar plantas alimentícias que surgem espontaneamente no campo.
Nos
últimos anos, embalados pelo movimento, alguns mercados e feiras
ampliaram a oferta de PANC, chefs as incorporaram em restaurantes, e
cozinheiros criaram contas no Instagram e YouTube para compartilhar
receitas.
Mas ele afirma que ainda falta muito para que essas plantas deixem de ser consideradas "não convencionais".
No
caso das espécies silvestres presentes na lista, por exemplo, é preciso
que agricultores e instituições de pesquisa se dediquem a estudá-las -
assim como fazem há milênios com plantas como o arroz e o trigo.
E
quando a planta só existe em ambientes naturais, como o buriti, deve-se
trabalhar com comunidades tradicionais e pequenos agricultores para
apoiar redes de coleta, beneficiamento e comercialização com preço
justo.
Legenda da foto, Valdely Kinupp mostra tubérculo gigante do cará-de-espinho, que pode ser consumido como a batata
O que é PANC
Kinupp esclarece que algumas plantas do livro são consumidas em partes do país, mas ignoradas em outras.
Uma
das espécies que mais o entusiasmam é o cará-de-espinho, uma trepadeira
nativa das regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste que produz tubérculos
comestíveis que podem ultrapassar 180 kg.
"Essa
planta é a solução para a agricultura no trópico úmido", afirma.
Segundo o pesquisador, os tubérculos podem ficar armazenados por até 120
dias fora da geladeira sem apodrecer e podem ser consumidos como a
batata (frita, cozida, em purê) ou virar farinha.
Hoje, no entanto, ele afirma que a espécie só é consumida em aldeias indígenas e em comunidades rurais no Baixo Amazonas.
Outras
espécies citadas no livro têm mais penetração popular ou já foram mais
consumidas - caso da ora-pro-nóbis, um arbusto com frutos, flores e
folhas comestíveis originário do Sul, Sudeste e Nordeste do Brasil, e
que pertence à culinária típica de Minas Gerais.
Seus frutos são ricos em carotenoides e vitamina C, e as folhas, quando desconsiderada a água, têm até 35% de proteína.
Legenda da foto, Coletor de babaçu no Maranhão; atividade tem encolhido nas últimas décadas
Outro
exemplo é o babaçu, palmeira nativa do Mato Grosso e de vários Estados
do Nordeste, cuja castanha pode ser consumida cru ou torrada, além de
processada para extração de leite ou transformada em farinha para pães e
mingaus.
Essa castanha contém de 60% a 70% de óleo rico em ácido láurico, similar ao presente no óleo de coco e no azeite de dendê.
Em
1984, a Embrapa identificou a existência de 12 a 18 milhões de hectares
de babaçuzais no Brasil. Na página de seu livro dedicada à espécie,
Lorenzi e Kinupp afirmam que o babaçu tem "grande potencial alimentício"
e "deveria estar no mercado".
E houve uma época em que o fruto de fato esteve nas prateleiras.
Na
década de 1990, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), cerca de 300 mil famílias trabalhavam com o fruto.
Em 2017, no entanto, o número havia despencado para 15 mil famílias.
Pesquisadora
em agricultura familiar e desenvolvimento sustentável da Embrapa
Cocais, no Maranhão, a agrônoma Guilhermina Cayres diz que hoje quase
toda a extração atual é destinada à indústria de cosméticos e materiais
de limpeza.
Ela
afirma à BBC que o Maranhão chegou a ter várias indústrias dedicadas à
produção de óleo de cozinha de babaçu. Porém, o setor não foi capaz de
competir com o óleo de soja, mais barato, e tem sofrido com a expansão
da pecuária sobre os babaçuzais.
Além
disso, Cayres afirma que muitos trabalhadores deixaram o babaçu por
associá-lo à pobreza e por considerar a atividade extenuante.
Legenda da foto, Quebradeira de coco no Maranhão, onde fruto chegou a gerar renda para 300 mil famílias
Grande
parte do serviço das famílias consiste em quebrar artesanalmente o coco
que abriga as castanhas, função desgastante e normalmente assumida por
mulheres.
A
pesquisadora diz esperar que o cenário mude com o desenvolvimento pela
Embrapa de uma ferramenta que facilita a quebra do coco.
A
invenção, que já está sendo fabricada por uma pequena empresa local,
foi finalista de um prêmio sobre tecnologias sociais da Fundação Banco
do Brasil em 2021.
Cayres também aposta no desenvolvimento de produtos com maior valor agregado à base de babaçu, como biscoitos e sorvetes.
Comida que vai para o lixo
Também são consideradas PANC espécies que são consumidas nacionalmente, mas têm partes comestíveis descartadas pela maioria.
Um
exemplo é o miolo do mamoeiro, que pode ser transformado em doces e
farinha. Outro, o mangará ("coração") da bananeira, que pode ser servido
refogado ou como recheio de pastéis.
Legenda da foto, Além dos frutos, miolo do mamoeiro também é comestível.
Hoje, porém, quase todas as plantações comerciais de mamão e banana do país desprezam os itens.
Até
mesmo a polpa de um fruto bastante popular, o caju, é descartada às
toneladas no Nordeste por indústrias que processam a castanha da fruta,
diz à BBC News Brasil o sociólogo Carlos Alberto Dória, autor de vários
livros sobre gastronomia.
"Os
galhos (dos cajueiros) são usados como lenha, e a castanha é torrada e
exportada", ele diz. "O resto, a polpa, vai para o lixo em quantidade
expressiva", afirma.
Um
dos sócios do Lobozó, restaurante em São Paulo inspirado nas antigas
culinárias caipira e caiçara do Estado, Dória diz que o movimento pela
valorização das PANC tem alcance limitado.
"É uma coisa de classe média que quer experimentar novidade e que se angustia com o desprezo pela diversidade", afirma.
Diz
ainda que ingredientes regionais, que só sejam produzidos ou consumidos
em partes do país, tendem a desaparecer das prateleiras porque a
indústria privilegia produtos de alcance nacional.
"A exceção talvez seja o açaí, um produto regional que virou uma commodity, mas isso é muito raro", afirma.
Agricultura urbana
Legenda da foto, Horta urbana em Quito, capital do Equador.
Que
meios então haveria para não só preservar mas também ampliar o acesso a
alimentos tão ricos, que exigem tão pouco e ocorrem em abundância no
Brasil?
O pesquisador Nuno Rodrigo Madeira, da Embrapa Hortaliças, sugere três caminhos.
O
primeiro seria incentivar o cultivo de plantas alimentícias não
convencionais, oferecendo apoio técnico aos agricultores, criando feiras
para a venda desses itens e espaços para a troca de conhecimentos.
O
segundo seria aprofundar o debate sobre a comida nas escolas; ensinar
às crianças desde cedo a importância de consumir produtos frescos e
nutritivos, fazê-las se questionarem sobre a origem dos alimentos e
entenderem como a comida é feita.
Ele
diz que o movimento em torno das PANC não é só sobre alimentação, mas
também sobre aprender a observar a natureza, conseguir identificar as
espécies que nos rodeiam, sentir-se parte de um sistema vivo e
integrado.
O
terceiro caminho para diversificar e baratear a comida, segundo o
pesquisador, seria reaproximar a produção de alimentos da população -
especialmente a população que vive nas cidades.
Pessoas
que morem em casas com quintais poderiam se tornar quase
autossuficientes em hortaliças, diz ele, se cultivassem alguns pés de
espécies como ora-pro-nóbis, chaya ou moringa - todas elas árvores ou
arbustos perenes que produzem folhas comestíveis em abundância o ano
todo.
Mas
como nem todos têm espaço em casa para produzir, o pesquisador defende
que as cidades destinem espaços para a criação de hortas urbanas.
Ele
afirma que é possível cultivar hortaliças para todos os habitantes de
uma cidade em 10% de sua área - iniciativa que já vem sendo adotada com
sucesso, segundo Madeira, em cidades como Detroit (EUA), Havana (Cuba)
ou mesmo em Sete Lagoas, em Minas Gerais.
Horta urbana no município de Sete Lagoas, em Minas Gerais.
A escolha das espécies levaria em conta as aptidões de cada local, mesclando plantas convencionais e não convencionais.
Ele
diz que a produção de alimentos dentro das cidades reduziria os custos
deles, pois se economizaria com o transporte dos itens até os mercados, e
poderia ocupar moradores de rua e outros grupos marginalizados.
"Não
faz sentido gastar um mundaréu de combustível para levar cenouras de um
Estado para o outro, como é feito hoje no Brasil", diz.
Madeira
diz que o cultivo de alimentos foi justamente o que propiciou o
surgimento dos primeiros núcleos urbanos da história, conforme famílias
se agruparam em torno de plantações.
"As cidades se formaram por causa da agricultura, e a agricultura não pode estar longe das cidades", diz.
Principais espécies citadas na reportagem
Babaçu (Attalea speciosa )
Babaçu (Attalea speciosa )
Beldroega (Portulaca oleracea )
Buriti (Mauritia flexuosa )
Cará-de-espinho (Dioscorea chondrocarpa )
Caruru (Amaranthus deflexus )
Ora-pro-nóbis (Pereskia aculeata )
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