Na tarde do último dia 6, um início de tumulto quebrou o silêncio no 6º
andar do Fórum Professor Júlio Mirabete, onde funciona o Tribunal de Justiça do
Distrito Federal. Numa pequena sala, detentos da penitenciária da Papuda
aguardavam para depor. De repente, um deles se queixa de que teve o braço
torcido por um dos guardas. O advogado do criminoso se aproxima e, aos gritos,
exige providências. Começa um bate-boca. De bermuda, camiseta e chinelos
brancos, o pivô da confusão era Walter Delgatti Neto, o chefe da quadrilha de
hackers que invadiu telefones celulares, copiou e divulgou mensagens do então
juiz Sergio Moro e de procuradores da República, desencadeando uma crise que
pôs em xeque uma das mais importantes operações de combate à corrupção já
realizadas no Brasil. O hacker havia sido intimado para prestar depoimento num
processo que apura o envolvimento dele num caso de estelionato. A troca de
insultos durou cerca de quinze minutos. Apesar dos protestos, ele permaneceu
algemado com as mãos para trás, observado de perto por três agentes fortemente
armados. Foi nessa condição que ele concedeu uma entrevista exclusiva a VEJA, a
primeira cara a cara desde que foi preso, há 136 dias.
EXECUÇÃO – Braga Netto: a palavra de um criminoso contra a de um general
de excelente reputação
EXECUÇÃO – Braga Netto: a palavra de um criminoso contra a de um general
de excelente reputação Fernando Frazão/Agência Brasil
“Vi um vídeo de um homem sendo executado. O rapaz matou, gravou e enviou
a imagem para o general”
Foram vinte minutos de conversa. Mesmo depois do entrevero com os
guardas, Delgatti (também conhecido como Vermelho) parecia tranquilo. Na
Papuda, ele havia comentado com colegas de cela que o material já divulgado era
“uma pequena amostra” do que ainda estaria por vir. E o que estaria por vir
teria potencial muito maior de causar estragos porque também envolveria
autoridades fora do universo da Lava-Jato, incluindo o presidente da República
e ministros do Supremo Tribunal Federal. O hacker de 30 anos alternava várias
vezes o tom de voz durante a entrevista, dependendo da pergunta que lhe era
feita. Às vezes, sussurrava e se inclinava para a frente como se quisesse
impedir que alguém ouvisse as respostas. Em outros momentos, não escondia a
empolgação, principalmente quando falava sobre os procuradores da Lava-Jato. E
assim surgiu a primeira “amostra” sobre o “que ainda está por vir”. Delgatti
contou que o grupo invadiu o celular do general Walter Braga Netto, o atual
chefe do Estado-Maior do Exército. Nesse momento, ele muda o tom. Dá ares de
gravidade ao que vai revelar e diz que entre as mensagens captadas no celular
do general uma provaria a ligação do Exército com um assassinato.
FUTRICA – Cármen Lúcia: conversas mostrariam parcialidade do Supremo
FUTRICA – Cármen Lúcia: conversas mostrariam parcialidade do
Supremo Ueslei Marcelino/Reuters
“A ministra estava num grupo falando da morte do neto do Lula”
Braga Netto comandou o processo de intervenção federal na segurança do
Rio de Janeiro de fevereiro até dezembro de 2018. Nesse período, de acordo com
o hacker, o general recebeu um vídeo de um de seus comandados com o relato da
execução sumária de uma pessoa. “Assim que eu abri, vi o homem sendo
executado”, contou o hacker. Poderia ser uma dessas imagens de crime que
circulam pelas redes sociais? Delgatti afirma que não. As imagens mostrariam
que foi o próprio executor quem enviou a mensagem ao general, que teria reagido
de maneira singular, repreendendo o subordinado não pela morte, mas por usar o
celular durante a operação. “O rapaz matou, gravou e enviou a imagem ao
general. Ele xingou. Abre aspas: ‘Usando o celular no combate. Está ficando
louco?’. Foi isso que eu vi”, garantiu. Braga Netto tem um currículo repleto de
condecorações e uma carreira exemplar. Ele já foi adido militar nos Estados
Unidos e coordenador de segurança durante a Olimpíada do Rio. Logo depois, foi
nomeado interventor no estado. Nesse período, houve grandes operações de
combate ao tráfico, e o número de mortes em ações policiais cresceu. Procurado,
o Exército informou que o “assunto é de inteiro desconhecimento”. O vídeo, de
acordo com o hacker, já foi entregue à Polícia Federal. Por enquanto, é a
palavra de um criminoso confesso contra a de um militar de excelente reputação.
DISTORÇÃO – Paludo: as conversas eram sobre valores desviados
DISTORÇÃO – Paludo: as conversas eram sobre valores desviados ./.
“Tem um áudio em que o procurador está aceitando dinheiro do Renato
Duque”
Na entrevista, Delgatti confirma que bisbilhotou as conversas de ao
menos um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Para quê? Segundo ele,
para mostrar quanto a Corte era parcial nas decisões que envolviam a Operação
Lava-Jato. “Tive acesso às mensagens da Cármen Lúcia. A ministra estava num
grupo falando sobre a morte do neto do Lula”, diz o hacker, que considerou o comentário
impróprio. Procurada, a ministra não se manifestou. A PF já apurou que, antes
de estourar o escândalo, Delgatti entrou em contato com a ex-deputada Manuela
d’Ávila, do PCdoB, ofereceu as mensagens e disse que o material não só
comprometeria a ministra Cármen Lúcia como colocaria em liberdade o
ex-presidente Lula. “Procurei a deputada porque sabia que ela era contra a
Lava-Jato devido à ideologia”, conta hacker.
ATAQUE – Bolsonaro e os filhos também foram alvos
ATAQUE – Bolsonaro e os filhos também foram alvos Roberto
Jayme/Ascom/TSE
“Eu tive acesso ao Telegram deles. Fiz campanha para o Bolsonaro e me
arrependi depois”
A Polícia Federal descobriu que pelo menos oitenta figuras públicas
foram alvo dos ataques da quadrilha. Nesse rol estão incluídos o presidente
Jair Bolsonaro e seus filhos. O hacker afirma que as invasões de fato
ocorreram. “Tive acesso ao Telegram deles”, diz. Dois celulares do presidente
foram alvo de ataques, mas, como Bolsonaro não utilizava o aplicativo, não
havia nenhum conteúdo disponível. No caso dos filhos Carlos, o Zero Dois, e
Eduardo, o Zero Três, o hacker procurou Manuela d’Ávila e disse que havia
colhido provas de ações para impulsionar mensagens de WhatsApp em favor de
Bolsonaro durante a campanha presidencial. Para mostrar que não estava
blefando, fotografou a tela do celular com as contas supostamente usadas por
Carlos e Eduardo e enviou as imagens à ex-deputada. Segundo ele, o objetivo não
era prejudicar o presidente — ao menos não naquela época. “Fiz campanha para o
Bolsonaro e me arrependi depois”, disse ele a VEJA.
PARCERIA – Manuela d’Ávila e a promessa de tirar Lula da prisão
PARCERIA – Manuela d’Ávila e a promessa de tirar Lula da
prisão Cristiano Mariz/VEJA
“Eu procurei a deputada porque sabia que ela era contra a Lava-Jato
devido à ideologia”
Se for condenado, Walter Delgatti
poderá ficar preso pelos próximos vinte anos. Mas Vermelho parece não se
preocupar muito com isso. Conta que a onda de invasões virtuais começou com um
sentimento de vingança. A primeira vítima foi um promotor de Araraquara, sua
terra natal, que o denunciou pelos crimes de tráfico de drogas e falsificação
de documento. “Fiquei cinco meses e vinte dias preso em regime fechado sem ter
feito nada”, lembra ele. “Fiz essa invasão do promotor que me prejudicou e
consegui muita coisa. Depois disso, fiz outra invasão, outra e mais outra, até
que cheguei na Lava-Jato. O meu azar foi o quê? Foi o Deltan (Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba) não apagar
mensagens dele”, diz, com uma pitada de ironia. Sorrindo, emenda outra
acusação, dessa vez contra o procurador Januário Paludo, outro membro da
força-tarefa: “Tem um áudio em que o procurador está aceitando dinheiro do
Renato Duque. A Procuradoria iniciou inquérito contra ele, né?”, pergunta,
mostrando que está acompanhando da prisão o noticiário. No dia anterior, Paludo
havia se tornado alvo de uma investigação após ser mencionado em mensagens de
um doleiro como suposto beneficiário de propinas. Ex-diretor da Petrobras,
Duque tentou fazer um acordo de delação. Em negociações assim, é comum que as
partes combinem um valor que o criminoso deve ressarcir aos cofres públicos.
Era sobre isso que o procurador falava? Delgatti, de novo, garante que não.
“Naquela época, eu estava tratando da repatriação de valores que o Duque
mantinha no exterior”, explica Paludo. O Ministério Público Federal do Paraná
divulgou uma nota em que reitera a “plena confiança no trabalho do procurador”.
REVIRAVOLTA – Palocci: um dos criminosos teria ligações com o
ex-ministro
REVIRAVOLTA – Palocci: um dos criminosos teria ligações com o
ex-ministro ./.
Nos próximos dias, a Polícia Federal deverá apresentar o relatório final
sobre o caso. Já foram colhidas evidências de que o grupo de hackers obtinha
informações privadas de pessoas e as usava para aplicar golpes financeiros. O
próprio Delgatti já foi condenado por estelionato e tráfico. O que se tenta
descobrir agora é se por trás das invasões dos celulares de autoridades havia
outro tipo de interesse, um financiador ou alguém responsável pelo planejamento
do crime. Percorrendo essa trilha, os investigadores se concentram há duas
semanas nas informações prestadas por Luiz Henrique Molição, um dos integrantes
da quadrilha, que firmou um acordo de delação premiada. Em troca da liberdade,
o hacker começou a contar o que sabe. Ele disse à polícia, por exemplo, que Delgatti
sempre se referia a um tal “professor” como alguém superior que estabelecia a
estratégia de divulgação das mensagens roubadas. Também entregou o telefone que
ele usava para manter contato com os comparsas e apresentou arquivos inéditos
de diálogos que estavam escondidos. “O Luiz sabe sobre a história do Braga
Netto. O Bolsonaro também era com ele, porque ele é de esquerda”, explicou
Delgatti. “Mas esse negócio de ‘professor’ não existe”, garantiu, antes de
encerrar a entrevista.
DELAÇÃO – Molição: revelação de que um militante do PT está envolvido na
invasão
DELAÇÃO – Molição: revelação de que um militante do PT está envolvido na
invasão ./.
Molição ficou preso durante 76 dias. A função dele no grupo era
intermediar as negociações entre Delgatti e o jornalista americano Glenn
Greenwald, editor do site The Intercept Brasil, que recebeu o pacote de
mensagens da Lava-Jato. Em seu primeiro depoimento, o hacker disse que
Delgatti tentou vender ao jornalista as conversas surrupiadas, mas que não teve
sucesso. No acordo de colaboração, forneceu uma pista que pode levar a uma
reviravolta no caso. Ele entregou aos investigadores o nome de três novos
personagens que estariam envolvidos na invasão dos celulares e na divulgação
das mensagens da Lava-Jato. Um deles seria um militante do PT ligado à família
do ex-ministro Antonio Palocci.
Veja.com
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