No começo de julho deste ano, uma escola no bairro de Manguinhos, na zona norte do Rio, teve de interromper as aulas durante três dias seguidos por causa de tiroteios nas imediações. E não é um problema restrito: no primeiro semestre de 2017, nada menos que 1 em cada 4 escolas da rede municipal carioca perdeu algum dia de aula por causa da violência urbana, de acordo com levantamento do jornal Folha de S. Paulo.
Para tentar amenizar o problema, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) criou um método chamado Acesso Mais Seguro (AMS). Consiste em adaptar para a realidade de escolas e unidades de saúde brasileiras os métodos que a organização usa em suas operações - inclusive em situações de conflito armado, onde a organização oferece ajuda humanitária há 150 anos.
Segundo Mary Werntz, diretora-adjunta global de operações do CICV, o método começa pela criação de um plano de contingência, elaborado a partir de reuniões com a comunidade. A ideia, exposta em conversa com a BBC News Brasil ao fim de uma viagem de oito dias pelo Brasil, é que seja seguido em situações de violência (como um tiroteio).
Em um dos municípios que adotaram o programa, o tempo que escolas, unidades de saúde e serviços de assistência social passam fechados por causa de situações de violência (como trocas de tiros) caiu 40%.
Hoje, o AMS é usado em cinco cidades brasileiras: Porto Alegre (RS), Florianópolis (SC), Duque de Caxias (RJ), e Fortaleza (CE), além do Rio. O programa também está sendo implementado em Vila Velha (ES). É feito em parceria com o poder público local - prefeituras e governos dos Estados.
Os profissionais que trabalham na escola ou na unidade de saúde recebem treinamento para saber como reagir numa situação de risco - as funções de cada um são definidas, rotas de fuga são traçadas e uma pessoa é designada como responsável por contatar as famílias, por exemplo. O objetivo, diz Werntz, é evitar que o pânico tome conta.
"O servidor de uma prefeitura nos disse que o programa tinha ajudado eles a, em vez de entrarem em pânico, agirem a partir do medo. E o medo, nessa situação, é motivador. Faz você agir com rapidez", diz ela.
"Nosso objetivo é que cada pessoa saiba exatamente o que vai fazer se algo acontecer. A ideia toda é entender os riscos envolvidos e responder de forma efetiva", afirma.
Consequências da violência armada
Filipe Tomé de Carvalho, chefe-adjunto da Delegação Regional do CICV para Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, explica que o Acesso Mais Seguro surgiu a partir de um projeto do CICV na cidade do Rio de Janeiro, de 2009 a 2013, cujo objetivo era entender em detalhes as consequências humanitárias da violência armada.
"Começamos a trabalhar em colaboração com as autoridades das áreas de saúde e educação, e vimos que eles não tinham qualquer treinamento para mitigar os efeitos da violência", diz ele.
"O que fizemos então foi adaptar a metodologia que nós mesmos usamos nas nossas atividades, do Comitê, em situações de violência, para treinar esses profissionais", explica Carvalho.
"Imagine um tiroteio do lado de uma escola, na hora do recreio. No fundo, trata-se de estruturar uma resposta para reduzir os riscos. Sem essa preparação, cada um reage à sua maneira: uns com mais calma, outros com menos", explica ele. O CICV não tem por objetivo acabar com a violência urbana, diz ele - apenas permitir que os trabalhadores estejam em melhores condições para prestar serviços públicos à população.
Zona de guerra?
O fato de o método funcionar nas áreas violentas das cidades brasileiras não significa dizer que as escolas e postos de saúde funcionem em um ambiente de guerra, segundo Mary Werntz.
"Os atores são diferentes, e as normas jurídicas que se aplicam, também", diz ela à BBC News Brasil. "Nós trabalhamos para atender as necessidades que vemos em campo. E certamente, em toda a América Latina há problemas que surgem por causa da violência urbana", diz.
Embora a violência urbana tenha efeitos devastadores em algumas cidades brasileiras, o país não vive uma situação de conflito armado, do ponto de vista do Direito Internacional Humanitário.
"Se você é uma pessoa vivendo em uma situação de grande violência urbana, ou se vive numa situação de conflito armado, haverá semelhanças. A incerteza, a dificuldade de conseguir informações para saber como cuidar da sua família; a questão de não conseguir informações confiáveis", diz Werntz.
A diferença, diz ela, está nos governos: nas cidades brasileiras o poder público existe - contrata funcionários, estabelece normas, fornece serviços públicos. Em ambientes de guerra, isso não acontece - muitas vezes, o Estado não existe mais ou deixa de atuar. Por isso, a forma de atuação da organização também é bastante diferente em cada caso.
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha, diz Werntz, atua com base nos princípios da independência, neutralidade e imparcialidade. Inclusive quando a organização monta um hospital de campanha numa zona de conflito, por exemplo.
"Há uma preocupação extrema da parte da Cruz Vermelha em deixar claro, especialmente numa situação de conflito, que nós não atuamos em favor de um lado ou de outro. Todo o valor do nosso trabalho reside no fato de nós termos essa capacidade de atravessar as divisões e falar com ambos os lados. Pegue o exemplo de um hospital de campanha: nós não somos um poder armado para chegar lá com tanques de guerra, ocupar o lugar e montar o hospital. É tudo negociado", diz ela.
Werntz é natural da Suíça e trabalha com questões humanitárias desde 1989. Está na Cruz Vermelha desde 1995, e já atuou pela organização em lugares como a Rússia, Ucrânia, Geórgia e Moldávia, Azerbaijão, Butão, Índia e Nepal.
Fundado em 1863 e sediado em Genebra, na Suíça, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha atua hoje em mais de 90 países do mundo, prestando assistência a vítimas de violência e de conflitos armados. No Brasil, o CICV atua hoje em outras frentes além do Acesso Mais Seguro: presta, por exemplo, assistência a familiares de pessoas desaparecidas e a imigrantes recém-chegados ao país no Estado de Roraima.
Nenhum comentário:
Postar um comentário