O secreto mundo dos trabalhadores norte-coreanos na Rússia

Uma garçonete em Koryo, restaurante norte-coreano em Moscou
Image captionUma garçonete em Koryo, restaurante norte-coreano em Moscou
O encontro do líder norte-coreano, Kim Jong-un, com o presidente russo, Vladimir Putin, atraiu os holofotes do mundo no final de abril.
Mas, longe das altas cúpulas, pouco se fala da vida dos milhares de imigrantes norte-coreanos que trabalham na Rússia.
Mais incerteza foi acrescentada ao futuro deles depois que sanções das Nações Unidas exigiram a volta deles à Coreia do Norte. O Conselho de Segurança avaliou que estes trabalhadores vivem em situação extremamente precária e têm os rendimentos de sua mão-de-obra direcionados para o governo.
Tanto os trabalhadores quanto as empresas que os empregam estão atentos: uma possível frente diplomática pode abrir caminho para que eles permaneçam.
Escondido no pátio de um shopping não muito distante do centro da cidade está uma das atrações turísticas mais improváveis de Moscou - Koryo, um restaurante norte-coreano.
Com uma equipe totalmente formada por norte-coreanos, o estabelecimento oferece aos comensais aventureiros um gostinho de Pyongyang.
Há música norte-coreana tocando na TV, e kimchi e macarrão frio sendo servidos.
Os funcionários do Koryo são apenas alguns dos cerca de 8 mil imigrantes norte-coreanos empregados em toda a Rússia.

Kim Jong-Un e Putin brindam em eventoDireito de imagemAFP PHOTO/KCNA VIA KNS
Image captionKim Jong-Un e Vladimir Putin se encontraram no final de abril
O número foi confirmado recentemente pelo Ministério das Relações Exteriores da Rússia e marca uma queda significativa na comparação com os mais de 40 mil trabalhadores norte-coreanos que moravam em território russo há dois anos.
A maioria foi forçada a sair para que a Rússia cumpra as sanções da ONU, impostas em setembro de 2017 em retaliação a testes com mísseis.
Segundo informou o ministério do Trabalho da Rússia, os únicos norte-coreanos que puderam trabalhar no país desde então foram aqueles cujos contratos foram assinados antes desta data.
Ainda de acordo com dados do ministério, mais de 85% dos imigrantes norte-coreanos trabalham no setor de construção civil.
O resto está envolvido em uma variedade de trabalhos: indústria têxtil, agricultura, extração de madeira, alimentação, medicina tradicional...
Em 2018, a BBC publicou o resultado de dois anos de apuração sobre as condições precárias de vida e trabalho destes imigrantes em países da União Europeia, na China e na Rússia.
Mas, para os norte-coreanos marcados pela pobreza, conseguir um emprego no exterior é um bilhete dos sonhos, diz o professor Andrey Lankov, especialista em Coreia do Norte da Universidade de Kookmin, em Seul, Coreia do Sul.
"É impossível encontrar um emprego na Rússia sem pagar suborno [na Coreia do Norte]".
E mesmo assim esses trabalhadores se deparam com acomodação e condições de trabalho abaixo do padrão, muitas vezes análagos à escravidão.
Em um caso bem documentado de 2015, as autoridades de imigração em Nakhodka, no extremo oriente da Rússia, encontraram três agrônomos norte-coreanos altamente qualificados limpando a neve nas estradas.
Seus empregadores - uma empresa russa e norte-coreana - afirmaram que o caso foi um desvio isolado do trabalho habitual dos homens, que seria o monitoramento da colheita. Mas as autoridades não se convenceram, e os três foram deportados.
Segundo o ministério do Trabalho da Rússia, os norte-coreanos recebem, em média, US$ 415 por mês (cerca de R$ 1,6 mil), 40% menos que o salário médio da Rússia.
"Você tem que entregar metade do seu salário para o Estado [norte-coreano]", disse Lankov à BBC.
"Mas o que resta ainda é muito mais do que você poderia ganhar em casa".
Dois operários norte-coreanos em estruturas suspensas
Image captionAproximadamente 8 mil norte-coreanos ainda estão trabalhando na Rússia, apesar de sanções
As empresas russas que desejam contratar norte-coreanos devem solicitar ao ministério do Trabalho uma "cota" e uma permissão usada para empregar estrangeiros.
Muitos estão no extremo oriente da Rússia, uma região com escasssez de mão-de-obra.
Dados do governo russo mostram que, em 2018, 40% de todas as licenças concedidas a empresas foram originadas nas regiões de Moscou e São Petersburgo.
Em São Petersburgo, foi amplamente divulgado que operários norte-coreanos participaram da construção de um estádio de futebol para a Copa do Mundo do ano passado.
Os maiores empregadores de norte-coreanos na Rússia são empresas de propriedade... norte-coreana.
E a maioria destas empresas é da iniciativa privada, sem a participação do governo necessariamente.
É um sinal, diz Andrey Lankov, de como os negócios norte-coreanos se tornaram descentralizados.
"O proprietário de uma empresa privada pode ser um funcionário do governo (norte-coreano), alguém dos serviços de segurança ou apenas um empresário com dinheiro e bons contatos", explica.
As sanções da ONU têm sido um balde de água fria ​para muitas empresas na Rússia.
Em Vladivostok, na costa do Pacífico, a construtora Yav-Stroi costumava ser uma das maiores empregadoras de imigrantes norte-coreanos, com licenças para 400 deles em 2017.
Estádio Krestovsky, em São PetersburgoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionNa época da Copa do Mundo, foi amplamente divulgado que mão-de-obra norte-coreana foi usada na construção de estádio em São Petersburgo
"Não podemos seguir sem os imigrantes", disse um porta-voz da empresa, que pediu anonimato, logo após a introdução das sanções.
Em Moscou, a Clínica de Medicina Oriental empregou 10 médicos norte-coreanos. Em 2018, a quota foi reduzida para apenas quatro.
"Se eles tiverem que deixar nossos pacientes, muitos dos quais são crianças deficientes, estes perderão o tratamento", disse a diretora Natalya Zhukova à BBC na época.
É claro que as autoridades russas gostariam de encontrar maneiras de aliviar as sanções contra a Coreia do Norte.
Em uma rara reunião com seu colega norte-coreano em Moscou em abril de 2018, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, disse que os dois lados discutiram maneiras de impulsionar os laços econômicos enquanto cumpriam a resolução do Conselho de Segurança da ONU.
Neste mês, uma delegação do parlamento russo visitou a Coreia do Norte com o mesmo objetivo.
"Somos vizinhos, estamos ligados pela amizade e por grandes vitórias, e devemos ajudar uns aos outros", disse o deputado Kazbek Taysaev à BBC após a visita.
"Especialmente por causa das sanções impostas à Coreia do Norte nos últimos 70 anos e das sanções sob as quais nosso país agora se encontra. Somos almas gêmeas".
De volta ao restaurante Koryo, em Moscou, os funcionários relutam em falar com a BBC sobre o futuro.
Mas os clientes que procuram saborear a Coreia do Norte talvez precisem mastigar mais rápido e enquanto podem.
Colaboraram na reportagem Petr Kozlov e Anastasia Golubeva, da BBC na Rússia

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