Os milhões de desempregados no Brasil querem ver a vida melhorar e não se interessam se "meninos vestem azul e meninas vestem rosa", como declarou a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, na semana passada.
A análise, da economista Monica de Bolle, pesquisadora do Peterson Institute, em Washington, destaca o principal desafio que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, têm pela frente: colocar a economia nos eixos, independentemente de uma "agenda de costumes".
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"O que as pessoas estão esperando do governo Bolsonaro é ver a vida melhorar. 'Menino veste azul e menina veste rosa' não é algo, sinceramente, que esteja no radar da maior parte da população brasileira, especialmente dos milhões e milhões que seguem desempregados. Vai ser um grande tiro n'água se esse for o foco do governo e vai acabar abalando a confiança no Bolsonaro", disse De Bolle, que também é diretora do Programa de Estudos Latino Americanos da Johns Hopkins University, em entrevista à BBC News Brasil.
A esse desafio, ela diz, somam-se complicações políticas, que podem vir até dos aliados do presidente. Para a economista, militares e evangélicos representam obstáculos para a aprovação das medidas anunciadas por Guedes ao assumir a pasta.
Os evangélicos, pondera, poderiam dificultar o andamento da reforma da Previdência ao impor projetos de fundo religioso ou conservador - a exemplo de textos sobre a chamada "ideologia de gênero" - como prioridade no Congresso.
"Eles possuem uma agenda que não tem nada a ver com a econômica, que é essa agenda de costumes", diz De Bolle.
"Há ministros no governo que apoiam essas pautas e muita gente no Congresso que também as defende, entre eles os novos congressistas. Aí existe um ponto de tensão: o que vai ser prioridade, no final das contas?"
Já os militares, com sua postura nacionalista, poderiam dificultar as privatizações defendidas pelo ministro, tópico que já foi origem de divergências entre ele e o presidente.
Caberá, portanto, a Bolsonaro mediar essas tensões, além de entregar o que prometeu durante a campanha em termos combate à violência. Em cima de todas essas questões, diz De Bolle, resta ainda uma dúvida fundamental: bem recebida pelo mercado, a agenda econômica de Paulo Guedes é a mesma de Bolsonaro?
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Em seu primeiro discurso, Paulo Guedes falou em expandir privatizações, aprofundar reformas e cortar gastos. Que tipo de sinalização essa fala deu ao mercado?
Monica De Bolle - A sinalização foi muito boa. O discurso tocou em todos os pontos certos.
Tem uma pauta que ele mencionou e é extremamente importante, mas que tem recebido pouca atenção porque que a gente fica o tempo todo nessa coisa de reforma da previdência. Ele falou de passagem, mas pelas indicações que fez para o BNDES, Caixa Econômica e Banco do Brasil, Paulo Guedes tem uma agenda de reforma dos bancos públicos que vai dar outro norte para essas instituições no país.
Os bancos públicos de um modo geral, mas principalmente BNDES e Caixa, tiveram um papel muito prejudicial para a economia não só pelas questões de corrupção, mas sobretudo pelas distorções que causaram, por uma atuação intensa no sistema de crédito, dando crédito para empresas que teriam acesso a outras fontes de financiamento.
Então, uma coisa que me deixou bastante animada é a reforma profunda desses bancos.
BBC News Brasil - Mas como isso pode ajudar nas contas públicas?
De Bolle - As pessoas que estão na Caixa e no Banco do Brasil vão enxugar um pouco a estrutura desses bancos e eventualmente vender pedaços deles. Isso mata dois coelhos. De um lado, você faz uma reforma do sistema financeiro, que é algo necessário e, de outro, traz receita extraordinárias para o Tesouro neste primeiro ano de governo. Você precisa ter um espaço no orçamento até que os efeitos da reforma da Previdência apareçam nas contas públicas, porque eles não são imediatos.
Essa conjunção de coisas - uma reforma no sistema financeiro e uma entrada de receitas, que dá espaço para o governo fazer uma boa reforma da Previdência - está bem concatenada.
BBC News Brasil - O discurso de Paulo Guedes foi bem recebido pelo mercado. Mas com o bate-cabeça entre Bolsonaro e o ministro em agendas importantes, como a reforma da Previdência e as privatizações, não há receio de que ele não consiga implementar as medidas anunciadas?
De Bolle - Para fazer essa reforma do sistema financeiro, em tese, ele não precisa bater cabeça com ninguém, porque não precisa passar pelo Congresso. As novas lideranças da Caixa vão poder vender ativos do banco. Não privatizar a Caixa, mas vender ativos, como se fez com o Banco do Brasil.
Em relação ao resto, sim. O discurso está correto na identificação dos problemas e na maneira de atacá-los, mas a gente sabe que em algumas dessas reformas, principalmente a parte da Previdência, mas também as privatizações, não há um consenso no entorno do Bolsonaro e do próprio presidente sobre como exatamente fazer isso.
Durante a campanha e na entrevista [em janeiro] para o SBT, Bolsonaro deu a entender que enxerga a reforma da Previdência como simplesmente uma mudança na idade de aposentadoria e a gente sabe que não é bem assim.
Inclusive, em seu discurso, Paulo Guedes foi bastante hábil quando tocou no tema do sistema previdenciário brasileiro como algo que gera desigualdade. Esse é um ponto muito importante que pode tornar a reforma um pouco mais palatável.
Agora, entre o discurso e a prática tem a política e o que esses outros grupos de influência ao redor do Bolsonaro, e o próprio Bolsonaro, pensam a respeito disso.
BBC News Brasil - Quanto tempo dura o voto de confiança do mercado com um cenário tão complicado à frente?
De Bolle - Se Paulo Guedes conseguir fazer essa reforma do sistema financeiro para arrumar um pouco as contas no primeiro ano governo, via receitas extraordinárias, o mercado vai continuar dando o benefício da dúvida para o governo por um tempo. Essa lua de mel pode ser mais longa, sim.
A dúvida é como que as outras agendas vão caminhar. As mensagens de campanha do Bolsonaro foram basicamente corrupção e combate ao crime. Então, além da agenda econômica, ele vai ter que entregar isso para manter a popularidade. E, nesse aspecto, as questões são muito mais complicadas. Porque você envolve não só uma questão difícil de resolver, que é a violência galopante nas cidades brasileiras, mas a situação fiscal dos Estados, que não têm condições de resolver o problema sozinhos e, portanto, vão precisar de recursos. E como você equaciona tudo isso junto com o que Paulo Guedes quer fazer? Tem um nó aí.
Sobre a questão fiscal dos Estados, ele não falou, e é um lado muito complicado dessa história, porque aí está a principal promessa de campanha do Bolsonaro: entregar algo que reduza a violência. Se ele não conseguir fazer isso num tempo relativamente curto, vai perder popularidade. E se perder popularidade, isso começa a afetar a agenda econômica também.
BBC News Brasil - Ainda estamos em uma das crises econômicas mais longas da história do Brasil e os números do desemprego seguem altos. Quanto tempo dura o voto de confiança da população? E o que é mais importante para ela: a agenda de costumes ou a econômica?
De Bolle - Para a população, o mais importante é ver a vida melhorar de fato. O que as pessoas estão esperando do governo Bolsonaro é ver a vida melhorar. "Menino veste azul e menina veste rosa" não é algo, sinceramente, que esteja no radar da maior parte da população brasileira, especialmente dos milhões e milhões que seguem desempregados. Vai ser um grande tiro n'água se esse for o foco do governo e isso vai acabar abalando a confiança no Bolsonaro.
É como eu estava dizendo, Bolsonaro vai ter que entregar duas coisas rápido: a primeira, é uma sensação de melhoria no crime e na violência, que está afetando muito a vida das pessoas, principalmente nos centros urbanos; a segunda é um crescimento em 2019 que seja o suficiente para melhorar a sensação que as pessoas têm sobre perspectivas futuras de emprego e renda. Essas são as duas coisas fundamentais que ele precisa entregar para não ver a popularidade ter uma queda abruta. Para a população, é isso que interessa. Esse bate-cabeça de agenda de costumes evangélicos está longe de ser o que interessa para as pessoas.
BBC News Brasil - Na semana passada, Bolsonaro levantou dúvida sobre a fusão da Embraer com a Boeing. Antes, ele já discordou de Guedes sobre a privatização da Eletrobras e da Petrobras. Quais são os principais empecilhos para as privatizações?
De Bolle - Na área das privatizações, Paulo Guedes é capaz de bater muita cabeça com os militares porque os militares, como a gente sabe, têm um viés nacionalista, como o próprio Bolsonaro.
Na parte que toca Eletrobras, Petrobras e possivelmente essa coisa da Boeing e da Embraer, entra o pensamento nacionalista dos militares. Ainda não dá para dizer quem sai ganhando, é muito cedo. Mas os militares têm força, então é possível que ele não consiga fazer tudo o que quer.
BBC News Brasil - E na reforma da Previdência?
De Bolle - Na área da Previdência, é mais ou menos a mesma coisa, mas com um fator adicional. A gente sabe que um outro grupo de influência no entorno do Bolsonaro são os evangélicos. E os evangélicos possuem uma agenda que não tem nada a ver com a econômica, que é a agenda de costumes.
Há ministros no governo que apoiam essas pautas e muita gente no Congresso que também as defende, entre eles os novos congressistas. Aí existe outro ponto de tensão: o que vai ser prioridade, no final das contas? A reforma da Previdência mais robusta, a que Paulo Guedes tem na cabeça, vai entrar em conflito com essa outra prioridade, da agenda de costumes?
Não parece ser muito difícil você passar a mudança da idade mínima da aposentadoria, mas o que mais passa? O que o Bolsonaro vai insistir que se faça? Porque durante a campanha ele falou aquela história de reforma da Previdência fatiada, mas isso aí não vai funcionar. O Congresso não vai ficar aprovando vários pedaços de reforma da Previdência. O Congresso vai aprovar uma coisa e depois vai mudar de direção, vai haver pressão para que façam outras coisas.
Nessas duas áreas, privatizações e reforma da Previdência, tem esse embate possível do Paulo Guedes com o grupo de influências dos militares e dos evangélicos, que vão tentar empurrar essa agenda de costumes, o que pode atrapalhar a agenda econômica.
BBC News Brasil - Os evangélicos tentariam colocar outras agendas na frente da Previdência?
De Bolle - Como prioritárias, exatamente. O que poderia levar o Bolsonaro - que vai, inevitavelmente, participar desse processo como o "broker" natural dessas divergências - a dizer "então, a gente aprova a idade mínima de aposentadoria e deixa o resto para depois".
BBC News Brasil - Bolsonaro e sua equipe têm habilidade de negociação para pesar todos esses interesses?
De Bolle - A gente vai ter que esperar para ver. No caso do Paulo Guedes, por exemplo, ele vai ter uma grande dificuldade de pôr em andamento a agenda de privatizações e da reforma da Previdência. Mas ele sendo esperto, e ele é um sujeito esperto, se puser a reforma do sistema financeiro em andamento primeiro, ganha espaço fiscal. Ele pode ganhar espaço para negociar a reforma da Previdência.
BBC News Brasil - Então, essas pautas econômicas dependeriam mais das habilidades do Paulo Guedes do que numa capacidade de negociação do governo?
De Bolle - As peças estão montadas dessa forma. Paulo Guedes tem uma agenda muito clara e ele deixou essa agenda mais clara ainda no discurso - o que não tinha ficado tão bem explicado durante a campanha, porque os temas econômicos simplesmente desapareceram.
No discurso, ficou muito claro qual é a agenda do Paulo Guedes. A dúvida é: essa agenda é do Bolsonaro também? Uma parte eu acho que sim. A que toca a reforma dos bancos públicos, acho sinceramente que o Bolsonaro nem está pensando nisso e os grupos que a gente mencionou, tampouco. Ninguém está pensando nisso, mas pode trazer o alívio fiscal e ao mesmo tempo a reforma que o Brasil precisa.
Nos outros temas, penso que as coisas ficam mais complicadas, porque aí entram os militares e os evangélicos. Paulo Guedes precisará ter habilidade para não entrar em choque imediato com esses dois grupos, para que avance na reforma da Previdência que ele quer. Se ele entrar num embate com esses dois grupos, as coisas podem ficar muito tumultuadas.
BBC News Brasil - Não há muitas responsabilidades recaindo sobre o ministro da Economia? O presidente não deveria ajudar a abrir espaço para as agendas econômicas?
De Bolle - Com certeza. Mas quantas vezes isso aconteceu no Brasil? De o presidente facilitar a agenda econômica num momento complicado? Que eu me lembre, só aconteceu no governo Fernando Henrique [Cardoso]. Em nenhum outro governo a gente teve o presidente facilitando algo.
O primeiro mandato do Lula e o segundo não contam muito porque ele estava surfando uma onda de bonança mundial que não vai se repetir jamais. E no governo Dilma, a gente viu a presidente atrapalhar a agenda o tempo todo. No governo Temer também, de certa forma, para ele se proteger.
Na realidade, a gente nunca teve, talvez a exceção do Fernando Henrique, um presidente com uma agenda clara e alinhada com a de seu ministro da Fazenda. Os ministros da Fazenda sempre estiveram meio sozinhos. Pega o [Joaquim] Levy...
BBC News Brasil - No caso de Bolsonaro, essas discordâncias entre o presidente e seu ministro da Fazenda ainda durante a campanha intensificam esse padrão?
De Bolle - No caso do Bolsonaro, a preocupação que ele tem é nova no Brasil e por isso é difícil saber o que vai acontecer. Não há, como acontecia com Dilma, uma pressão do partido para minar o ministro escolhido pelo presidente. O que acontece com Bolsonaro é diferente.
Para conseguiu se eleger, ele precisou do apoio, de um lado, dos militares e, de outro, dos evangélicos. E ele ganhou muito apoio dos evangélicos. Quando você olha a votação do segundo turno é claro que na eleição do Bolsonaro, diferentemente das anteriores, quando o grupo se dividiu, os evangélicos foram extremamente importantes. E eles vão cobrar isso do presidente.
A questão é: como esse grupo, que tem uma agenda muito clara e foi o fiador do Bolsonaro, vai se posicionar para pressionar o governo? E em que medida Bolsonaro vai ser capaz de navegar essas divergências? Porque ele vai ter que navegá-las e que não vai ser Paulo Guedes sozinho que vai conseguir enfrentar alguns desses grupos. Essas são todas as dúvidas que a gente tem e são os riscos para a agenda econômica.
BBC News Brasil - Em seu discurso, Guedes falou em liberal democracia e na função libertadora da educação. O tom soou mais liberal do que os de outros ministros, como Damares Alves. Isso pode ser uma fonte de atritos com esse grupo evangélico?
De Bolle - Paulo Guedes vai bater cabeça com Damares [Alves] e vai bater cabeça com Ernesto [Araújo, ministro das Relações Exteriores]. Tenho certeza. A linha dele é liberal em todos os sentidos. Então, não é aquela coisa de 'sou liberal na economia e conservador nos costumes', a baboseira que ficavam falando durante a campanha. Paulo Guedes não é isso, é um liberal mais puro.
Ele pode fazer o discurso que fez sobre educação, mas essa não é uma agenda dele, então não sei se vai bater tanta cabeça com Damares. Mas com o Ernesto Araújo com certeza. Afinal de contas, Guedes tem responsabilidade sobre comércio exterior e o outro está lá falando de 'globalistas' e aquela besteirada. Ali certamente vai ter um conflito.
BBC News Brasil - Em seu primeiro discurso, Araújo defendeu uma política externa "sem medo de ser criticada" e um Itamaraty "para o Brasil". Uma abordagem dessas, mais nacionalista, pode afetar nosso comércio exterior?
De Bolle - O Ernesto Araújo vai bater cabeça com muita gente e, sim, com potenciais parceiros comerciais do Brasil, mas antes de mais nada com o pessoal de dentro do Itamaraty.
Essa visão extremamente ideológica dele é um desvio absoluto da maneira como o Itamaraty sempre operou - e da forma como as pessoas de dentro do Itamaraty sempre se posicionaram.
Essas questões todas misturadas, de levar a embaixada para Jerusalém, de brigar com a China, podem trazer prejuízos muito grandes para as exportações brasileiras. Acho que vai ter muita pressão em cima dele tanto de dentro do Itamaraty quanto dos empresários, principalmente do pessoal do agronegócio, para tentar segurá-lo. Agora, a ver o que acontece. Ele não dura muito tempo, essa é minha opinião.
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