Faz 215 anos que o Haiti se tornou a primeira nação independente da América Latina. É a república de população majoritariamente negra mais antiga do mundo. No continente americano como um todo, foi a segunda república a se formar, atrás apenas dos Estados Unidos.
Tudo isso aconteceu após uma revolução liderada por escravos. Essas conquistas são motivo de orgulho para uma nação que, há muitos anos, também encabeça rankings dolorosos.
O Haiti é o país mais pobre da América e um dos mais pobres do mundo, segundo o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.
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As razões para isso são várias. O Haiti foi palco de colonização europeia, ocupações pelos Estados Unidos, escravidão, revoluções e diversas ditaduras. E, em 1957, François "Papa Doc" Duvalier impôs ao longo de 28 anos um dos regimes mais corruptos e repressivos da história moderna.
Infraestrutura, educação e saúde não foram prioridades durante esse período. Além da pobreza, o Haiti tem o "azar" de estar localizado entre as placas tectônicas da América do Norte e do Caribe, e ser ponto de passagem de fortes furacões.
Em meio a todos esses obstáculos e problemas, há um que salta aos olhos: para declarar sua independência, o Haiti teve que pagar uma indenização milionária ao antigo colonizador.
Mas como é que esse país da América Central passou de colônia a república?
De Ayiti a A Hispaniola a Saint-Domingue
Cristovão Colombo chegou à ilha que hoje abriga o Haiti e a República Dominicana em dezembro de 1492, e o território passou ao controle da Coroa espanhola.
Colombo batizou a ilha de A Hispaniola. Aos nativos, o navegador deu o nome de "índios" e com eles passou seu primeiro Natal no "Novo Mundo".
Ainda que inicialmente a exploração de jazidas de ouro e a produção de açúcar tenha entusiasmado os colonizadores, o descobrimento de enormes riquezas em outras partes do continente americano fez com que os exploradores espanhóis perdessem o interesse por A Hispaniola, sobretudo a parte ocidental da ilha.
Piratas ingleses, holandeses e franceses passaram a disputar esse território da ilha a que os nativos chamavam de Ayiti.
Os que viajavam com a bandeira do rei francês Luis 14, o "Rei Sol", assumiram gradativamente o controle de parte da ilha e, em 1665, a França deu a ela o nome de Saint-Domingue.
Cerca de 30 anos depois, Madri cedeu formalmente um terço de A Hispaniola ao governo francês.
A pérola das antilhas
Os franceses converteram Saint-Domingue em uma das colônias mais ricas do mundo e a mais lucrativa do Caribe.
Em 1789, 75% da produção de açúcar do mundo vinha de Saint-Domingue, assim como grande parte da riqueza e glória da França.
A chamada "pérola das Antilhas" produzia também café, tabaco, cacau, algodão e índigo. A Saint-Domingue chegou a liderar a produção de cada um desses cultivos em um momento ou outro durante o século 18.
Exploração humana
Mas a enorme riqueza produzida pela colônia era extraída graças à escravização de dezenas de milhares de africanos e à implementação de um violento sistema de exploração humana.
No final do século 18, a "pérola das Antilhas" foi destino de um terço de todo o comércio de escravos do Atlântico.
O fluxo intenso era resultado da alta taxa de mortalidade de escravos na ilha: a longevidade média era de 21 anos, e muitos morriam até três meses após chegar ao território.
Doenças, excesso de trabalho e o sadismo dos colonizadores eram responsáveis pela maioria das mortes.
O escritor haitiano Pompée Valentin ilustrou, em textos, o tratamento dado aos escravos nas plantações haitianas.
Em textos, ele menciona práticas de tortura, como prender os escravos em formigueiros ou áreas com mosquitos, pendurar de cabeça para baixo, crucificar e fazer com que comessem fezes.
A revolução dos escravos de Saint-Domingue
O eco da Revolução Francesa de 1789 chegou à rica ilha. Mestiços e escravos passaram a se perguntar como a Declaração dos Direitos Humanos do Homem se aplicaria a eles.
Em 1791, um home de origem jamaicana chamado Boukman liderou uma revolta numa grande plantação.
Seguindo o modelo da revolução francesa, em 22 de agosto daquele ano, os escravos destruíram as plantações e executaram todos os brancos que viviam na região.
Foi a primeira ação de um movimento que se converteu em guerra civil e, depois, em batalha com as forças de Napoleão Bonaparte. A revolta durou 12 anos sem conseguir alcançar o objetivo final de expulsar os franceses.
Em 1º de janeiro de 1804, o Haiti declarou sua independência e Jean-Jacques Dessalines se tornou seu primeiro governante, inicialmente como governador-geral e, depois, como imperador Jacques 1º do Haiti, título que ele mesmo se deu.
Dessalines deu a ordem para que todos os homens brancos fossem condenados à morte. E assim foi feito: entre fevereiro e abril de 1804 ocorreu o chamado "Massacre do Haiti", com a morte de 3 mil a 5 mil mulheres e homens brancos de todas as idades.
Sem qualquer intenção de ocultar o ocorrido, Dessalines fez um pronunciamento oficial: "Demos a esses verdadeiros canibais guerra por guerra, crime por crime, indignação por indignação. Sim, salvei o meu país, vinguei a América".
Custos
A longa luta pela independência deu autonomia às pessoas antes escravizadas, mas também destruiu a maioria das plantações e a infraestrutura do país.
O custo humano também foi enorme: calcula-se que das 425 mil pessoas escravizadas, tenham sobrado apenas 170 mil em condições de trabalhar para reconstruir o país.
A brutal vingança contra os brancos levada a cabo após a França se render trouxe o desprezo de várias nações. Nenhuma reconheceu o Haiti diplomaticamente.
O que ocorreu em Saint-Domingue era o "pior pesadelo" de qualquer país detentor de colônias. Por isso, nações como Portugal e Espanha deixaram o Haiti em "quarentena" para prevenir que a revolução se espalhasse por outras regiões.
Foi assim que ocorreu o que hoje é difícil de se imaginar. Em 17 de abril de 1825, o então presidente do Haiti Jean-Pierre Boyer assinou um acordo com o rei Carlos 10, da França.
O acordo prometia ao Haiti reconhecimento diplomático pela França em troca de uma redução de 50% das tarifas alfandegárias às importações francesas e uma indenização de 150 milhões de francos (cerca de US$ 21 milhões hoje), pagos em cinco parcelas.
Essa quantia seria para compensar os produtores franceses pelas propriedades que haviam perdido - não apenas as terras mas também os escravos.
Se o governo haitiano não assinasse o tratado, o país não só continuaria isolado diplomaticamente como seria cercado por uma frota de embarcações de guerra francesas que estava na costa haitiana.
Os 150 milhões de francos equivaliam às receitas anuais do governo haitiano multiplicadas por dez, portanto o Haiti teve que recorrer a um empréstimo para pagar a primeira parcela.
E quem emprestou esse dinheiro com juros? Um banco francês.
A dívida da independência
Assim começou formalmente o que se conhece como a dívida da independência. Um banco francês emprestou ao Haiti 30 milhões de francos - o valor da primeira parcela devida - e deduziu automaticamente desse valor 6 milhões de francos em comissões bancárias.
Com o que sobrou, 24 milhões de francos, o Haiti começou a pagar as indenizações à França, o que significa que o dinheiro passou direto dos cofres de um banco francês para os do governo francês.
E o Haiti ficou devendo 30 milhões de francos ao banco francês, e mais 6 milhões de francos ao governo da França referentes ao valor que faltou da primeira parcela.
Era uma espiral sem fim de dívidas para pagar uma indenização que continuou alta demais para os cofres do país caribenho mesmo quando foi reduzida à metade, em 1830. (Mais tarde, em 1844, o lado leste da ilha se declararia definitivamente independente do oeste, formando a República Dominicana).
Desde então, o Haiti teve que pedir grandes empréstimos a bancos americanos, franceses e alemães, com taxas de juros exorbitantes que comprometiam a maior parte das receitas nacionais.
Finalmente, em 1947, o Haiti terminou de compensar os produtores franceses. Foram 122 anos pagando dívidas desde a independência.
BBC
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