Com sistema político apodrecido, Lula continuará sendo um candidato possível, diz historiador
Apesar de toda
exposição negativa que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu
partido vêm sofrendo, devido às denúncias de corrupção envolvendo a
Petrobras e as maiores empreiteiras do país, ambos permanecem sendo
"atores de primeira grandeza no jogo político nacional", avalia o
historiador Daniel Aarão Reis, um dos fundadores do PT que se tornou seu
crítico.
Em entrevista à BBC Brasil concedida na sexta-feira,
após a ação da Polícia Federal contra o ex-presidente, Aarão previu um
futuro difícil para o PT, mas disse que não o vê morto.
Na sua
visão, Lula e seu partido "continuam ancorados em vastas camadas
populares, reconhecidas pelos ganhos materiais e simbólicos conquistados
ao longo dos mandatos petistas". Para ele, "o sistema político
brasileiro está apodrecido" e, dentro desse contexto, o ex-presidente
permanece um candidato viável.
"É um sistema que acoberta e
incentiva a corrupção. É preciso reformá-lo em profundidade. (...) Se
isto não acontecer, Lula continuará sendo um candidato possível."
Professor
do curso de História da UFF (Universidade Federal Fluminense), Aarão
chegou a presidir o PT do Rio de Janeiro nos anos 90, mas se desfiliou
da legenda ainda antes do escândalo do mensalão, por discordar dos rumos
do partido.
Ele nota que as denúncias de corrupção começaram nos
anos 90, principalmente em prefeituras que o PT conquistou no interior
de São Paulo – mas foram abafadas pela corrente majoritária do partido,
liderada por Lula.
Para o ex-militante petista, não há como eximir
a presidente Dilma Rousseff e seu antecessor do esquema de desvios da
Petrobras: "A dimensão da corrupção é surpreendente. Lula e Dilma são
obviamente responsáveis por este descalabro. (...) Se sabiam ou não, é
completamente irrelevante. Eles são responsáveis. Fugir disso é como
ocultar o sol com uma peneira".
Confirma abaixo os principais trechos da entrevista, concedida por e-mail.
BBC Brasil – Em
2007, após a crise do Mensalão e a reeleição de Lula presidente, o
senhor escreveu em um artigo: "nada indica que Lula e o PT possam ser
eliminados da cena política nacional, ao contrário, mais do que nunca
parecem enraizados na sociedade brasileira". Qual o seu diagnóstico
hoje?
Daniel Aarão Reis – Eu continuo
achando que o PT e Lula são atores de primeira grandeza no jogo político
nacional. Há um conjunto de interesses que se estruturou em torno do PT
e não há, no horizonte imediato, indicações de que estes interesses
estejam migrando para outros partidos ou para outras alternativas
políticas. As próximas eleições municipais serão um teste para avaliar a
extensão – e a profundidade – dos abalos sofridos por Lula e pelo PT.
BBC Brasil – Que interesses são esses?
Daniel Aarão Reis – O PT
e Lula, em especial, continuam ancorados em vastas camadas populares,
reconhecidas pelos ganhos materiais e simbólicos conquistados ao longo
dos mandatos petistas. Além dos milhares de militantes bem postados nos
vários níveis dos aparelhos do Estado (federal, estaduais e municipais).
Iludem-se os que imaginam, exercitando o wishful thinking (pensamento guiado pelo desejo), que o PT está morto e bem morto.
BBC Brasil – Os acontecimentos da última semana aumentaram as chances de impeachment da presidente Dilma?
Daniel Aarão Reis
– As chances de um impeachment parecem maiores do que estavam antes da
"delação premiada" de Delcídio do Amaral (na quinta-feira, a revista IstoÉ
divulgou o conteúdo de uma suposta delação do senador petista, não
confirmada oficialmente, com graves acusações a Lula e Dilma). Resta
confirmá-las e comprová-las.
E conseguir uma substancial maioria, de dois terços
(dos deputados), para concretizar a primeira etapa do processo (aprovar a
abertura do processo na Câmara). Coisa muito difícil, apesar do
desgaste de Dilma e do PT. As manifestações previstas para o dia 8 (de
defesa de Lula) e o dia 13 ( em protesto contra Dilma), podem jogar – ou
retirar – água desta fervura. Poderão – ou não – ser decisivas.
BBC Brasil – O
que diferencia o contexto atual do de 2006? Que fatores contribuíram
para a superação da crise do mensalão não estão presentes agora?
Daniel Aarão Reis
– Eu mencionaria dois aspectos que me parecem mais relevantes. De um
lado, a exasperação das oposições. De outro, o desnorteamento das bases
sociais e políticas do PT.
Comecemos com a análise das oposições:
elas estavam convencidas de que iriam ganhar a disputa em 2014. Perderam
e não se conformaram. Em 2006, as oposições estavam certas de que Lula
"sangraria" até o fim de seu primeiro mandato e nem teria coragem de se
recandidatar. Não por outra razão, deixaram de investir na hipótese do
impeachment.
Do ponto de vista das bases sociais e políticas do
PT, mesmo no auge do escândalo do dito "mensalão", Lula conservava um
grande prestígio junto às camadas populares e junto a muitos
intelectuais formadores de opinião. Nada disso acontece agora.
Dilma, esquecendo-se dos
compromissos assumidos no segundo turno, adotou uma orientação
completamente oposta ao que dissera na campanha. Mas o estelionato
eleitoral teve pernas curtas. Ela não ganhou credibilidade junto às
oposições e perdeu prestígio junto às camadas populares. Já Lula,
afastado do poder há cinco anos, não tem mais as margens de manobra de
que dispunha em 2006.
São muitas as diferenças, portanto, entre aquela conjuntura e a atual.
BBC Brasil – Os
anos 90 foram marcados por denúncias de corrupção em prefeituras do PT –
reveladas inclusive por pessoas de dentro do partido, que tentaram
combatê-las. Também segundo seu artigo, o grupo liderado por Lula,
Articulação, abafou esses casos e mesmo expulsou os denunciantes da
legenda. Essa tolerância com a corrupção, esses casos, seriam o embrião
dos escândalos de hoje?
Daniel Aarão Reis
– Certamente. Nos anos 1980, o PT aprovou resoluções claras proibindo
formalmente ao partido e a seus líderes recorrer a financiamentos de
empreiteiras, bancos ou grandes empresas capitalistas, mesmo que fossem
legais. Estas resoluções foram gradativamente desrespeitadas por Lula e
José Dirceu até que foi possível revogá-las em nome de um discutível
"realismo político".
Ao longo dos anos 1990, o PT foi se revelando cada vez mais seduzido pelo poder do que pelos princípios que formulara quando de sua fundação. Teve início, então, a promiscuidade entre o partido e Lula e as grandes empresas.
Ao longo dos anos 1990, o PT foi se
revelando cada vez mais seduzido pelo poder do que pelos princípios que
formulara quando de sua fundação. Teve início, então, a promiscuidade
entre o partido e Lula e as grandes empresas.
Tratava-se de um
sistema consolidado. Em vez de reformá-lo, o PT preferiu aderir a ele.
Tornou-se um partido "como os outros". Isto começou nos anos 90 no
Estado de São Paulo. As tramoias foram amplamente denunciadas, mas a
maioria da mídia e do próprio PT não se interessou por elas...
BBC Brasil – Como
senhor recebe as denúncias de escândalo na Petrobras e dos supostos
favorecimentos de Lula por empreiteiras? Qual sua visão sobre as
condutas do ex-presidente? E de Dilma?
Daniel Aarão Reis
– A mudança de pele do PT foi lenta, segura e gradual. Escrevi um longo
artigo, referido por você, em que estudava esta "mutação", consolidada
ainda em meados dos anos 1990. De qualquer forma, a dimensão da
corrupção é surpreendente. Lula e Dilma são obviamente responsáveis por
este descalabro.
No Brasil e no mundo, os líderes políticos gostam de
se apropriar pessoalmente dos êxitos de seus governos e atribuir os
fracassos e erros a subordinados. Entretanto, eles devem assumir a
responsabilidade política pelos êxitos e fracassos. Se sabiam ou não, é
completamente irrelevante. Eles são responsáveis. Fugir disso é como
ocultar o sol com uma peneira.
BBC Brasil – Depois de tantas denúncias, Lula tem força para disputar uma eleição presidencial?
Daniel Aarão Reis
– O sistema político brasileiro está apodrecido. É um sistema que
acoberta e incentiva a corrupção. É preciso reformá-lo em profundidade.
Para isto acontecer, é preciso que a sociedade se mobilize e pressione a
"aristocracia" política, encastelada nas alturas do poder e nesta Ilha
da Fantasia chamada Brasília. Se isto não acontecer, Lula continuará
sendo um candidato possível.
BBC Brasil – No artigo já
citado, o senhor também descreve a trajetória que levou o PT de um
partido com ideais revolucionários, socialistas, a uma instituição
pragmática, com objetivos eleitorais. Havia outra forma de chegar ao
poder no Brasil?
Penso que a grande mídia tem sido muito unilateral e as críticas dos petistas têm fundamento. Se recebessemos a visita inesperada de um marciano no Brasil, ele pensaria que o PT, Lula e Dilma inventaram a corrupção.
Daniel Aarão Reis – Eu não chegaria a dizer que o PT era revolucionário. Nem socialista, ni mucho
menos. Mas era reformista, e alguns chegaram a formular a hipótese de
um "reformismo revolucionário" (Carlos Nelson Coutinho). O abandono dos
princípios foi muito ruim, porque o fermento reformista que orientava o
PT dissolveu-se e não surgiu nenhuma alternativa credível que pudesse
assumir os ideais abandonados.
Seria mais democrático o PT
insistir com suas propostas até que a população se convencesse de sua
adequação e viabilidade. Mas o PT preferiu o atalho da acomodação.
Tratava-se de "chegar lá". Mas se "chegou lá" para que exatamente? Para
ser "um partido como os outros?".
BBC Brasil – Há muitas queixas dos petistas à
imprensa. O senhor concorda? Ou entende que as denúncias são muito
graves e merecem ampla cobertura?
Daniel Aarão Reis
– Penso que a grande mídia tem sido muito unilateral e as críticas dos
petistas têm fundamento. Se recebessemos a visita inesperada de um
marciano no Brasil, ele pensaria que o PT, Lula e Dilma inventaram a
corrupção. Nada mais falso. Eu diria que o PT foi um dos últimos a
aderir a este sistema, ancorado em nossa história.
A corrupção é
inerente à espécie humana. Mas há sistemas mais ou menos favoráveis a
ela. O sistema político brasileiro acoberta e incentiva a corrupção, por
isto é que ela alcançou esta dimensão gigantesca. Se não for reformado,
de nada valerá trocar lideranças.
BBC Brasil
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