Intervenção no Rio: Procuradoria diz que mandado coletivo pressupõe que moradores de bairros pobres são 'naturalmente perigosos'

Militar do Exército nesta terça-feira na Favela Kelson's, na Penha, zona norte do Rio | Foto: Fernando Frazão/Ag. Brasil
Na última
segunda-feira, o decreto da intervenção federal na segurança pública do
Rio rendeu uma vitória política muito importante ao Palácio do Planalto.
Foram 340 votos favoráveis na Câmara dos Deputados - até deputados de
partidos de oposição, como PDT, PSB e Rede, apoiaram a proposta. E na
noite desta terça, o Senado aprovou definitivamente a medida.
Mas
há um lugar a poucos metros do Congresso no qual a iniciativa de Michel
Temer (MDB) não foi tão bem recebida: a Procuradoria-Geral da República
(PGR).
No começo da noite desta terça-feira, a procuradora Deborah
Duprat distribuiu aos colegas um texto no qual faz críticas duras ao
decreto, anunciado pelo governo na última sexta-feira. Ela é a chefe da
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.
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A peça é uma "nota técnica conjunta", assinada por Duprat e mais
três procuradores, incluindo a coordenadora da 2ª Câmara do Ministério
Público Federal (que trata da área criminal), Luiza Cristina Fonseca
Frischeisen.
Quatro pontos chamaram a atenção dos procuradores,
mas as críticas mais duras foram ao ministro da Defesa, Raul Jungmann.
No começo da semana, ele defendeu o uso de mandados de busca e apreensão
"genéricos", isto é, destinados a várias casas em uma mesma rua, bairro
ou favela.
"Na realidade urbanística do Rio de Janeiro, você
muitas vezes sai com uma busca e apreensão numa casa, numa comunidade, e
o bandido se desloca. Então, você precisa ter algo que é exatamente o
mandado de busca e apreensão e captura coletiva, que já foi feito em
outras ocasiões. Ele precisa voltar para uma melhor eficácia do trabalho
a ser desenvolvido tanto pelos militares como pelas polícias", disse.
Para a chefe da Procuradoria dos Direitos do Cidadão, porém, o procedimento é "ilegal".

Raul Jungmann (centro, de óculos
escuros) deve voltar a comentar o assunto no começo da tarde de hoje |
Foto: Tânia Rego/Ag. Brasil
"Mandados em branco, conferindo salvo conduto para
prender, apreender e ingressar em domicílios, atentam contra inúmeras
garantias individuais, tais como a proibição de violação da intimidade,
do domicílio", diz o texto.
Segundo os procuradores signatários da
nota, os mandados contra os moradores de bairros e comunidades seriam
uma medida discriminatória. A ideia de um mandado de busca coletivo, diz
eles, "faz supor que há uma categoria de sujeitos 'naturalmente'
perigosos e/ou suspeitos, em razão de sua condição econômica e do lugar
onde moram".
Além
disso, algumas autoridades teriam defendido violações aos direitos
humanos em entrevistas à imprensa, dizem os procuradores. Acesse a íntegra da nota aqui.
"Os
signatários desta nota técnica não a podem concluir sem manifestar sua
perplexidade com as declarações atribuídas ao Comandante do Exército
(general Eduardo Villas Bôas), no sentido de que aos militares deveria
ser dada 'garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da
Verdade', e ao ministro da Justiça (Torquato Jardim), o qual, em
entrevista ao jornal Correio Braziliense, fez uso da expressão 'guerra'", diz o texto.
"Guerra
se declara ao inimigo externo. No âmbito interno, o Estado não tem
amigos ou inimigos. Combate o crime dentro dos marcos constitucionais e
legais que lhe são impostos", conclui.

Image caption
Deborah Duprat chefiará a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão até maio deste ano | Foto: Ag. Brasil
O decreto de intervenção federal está em vigor desde
que foi assinado, na sexta-feira passada. A medida significa que o
controle da segurança pública no Rio passa a ser do general do Exército
Walter Souza Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste.
A
intervenção federal está prevista para durar até o dia 31 de dezembro
deste ano. Polícia Militar, Civil, Bombeiros e administração dos
presídios estão sob controle de Netto.
Suavização
Nesta
terça, o ministro Torquato Jardim (Justiça) suavizou as declarações de
Raul Jungmann sobre a necessidade de mandados de busca coletivos.
Segundo ele, pode ser que algumas operações precisem de buscas em vários locais, mas não de forma indiscriminada.

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Torquato Jardim (Justiça) tentou amenizar as declarações de Raul Jungmann | Foto: Wilson Dias/Ag. Brasil
"Não há mandado coletivo. Há mandado de busca e
apreensão, que conforme a operação, se dedicará a um número maior de
pessoas", disse Jardim.
"O mandado de busca não pode ser
genérico, isso a Constituição não permite (...). Portanto, esses
mandados de busca e apreensão conterão um número maior ou menor de
pessoas em razão do objetivo do inquérito que estará sendo realizado",
disse ele.
A reportagem da BBC Brasil falou com a assessoria de
imprensa de Raul Jungmann na noite desta terça-feira, mas não foi
possível obter comentários do ministro.
O titular da Defesa deve abordar o assunto novamente nesta quarta-feira, após um evento marcado para as 14h30, em Brasília.
Outras preocupações
Além
dos mandados genéricos, há outros três pontos da intervenção que são
apontados como motivo de preocupação pelos procuradores signatários da
nota técnica:

- O decreto não especifica quais ações serão tomadas, e fixa um prazo longo demais. A
Constituição, dizem os procuradores, manda que intervenções deste tipo
sejam feitas com "amplitude, prazo e condições" já definidas no decreto.
A peça feita pelo Planalto "não cumpre com essa exigência". A proposta
trataria de "competências genéricas" do general Braga Netto, sem
detalhar "as providências específicas que serão adotadas".
- O texto aprovado no Congresso diz que Braga Netto "não está sujeito" às leis estaduais do Rio
que entrarem em conflito com o cumprimento dos objetivos da
intervenção. Para Duprat e seus colegas, Braga Netto precisa cumprir
também as leis locais, integralmente, de modo a respeitar o Poder
Legislativo do Rio e a separação de Poderes. A "imunidade" às leis
estaduais "violenta um dos pilares do regime democrático e abre grave
precedente", dizem os procuradores.
- Para os procuradores, o general Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste, atuará como um interventor civil,
e seus atos devem ser julgados (se for o caso) pela Justiça comum, não
pela Justiça Militar. A própria intervenção deve ser considerada civil, e
não militar. "Qualquer interpretação que tente vincular o exercício da
função de interventor com o desempenho de função estritamente militar
será inconstitucional", diz a nota técnica.
A Procuradoria
Federal dos Direitos do Cidadão é o braço do Ministério Público que
existe para representar os cidadãos frente aos órgãos públicos,
protegendo direitos individuais e também aqueles chamados de "direitos
coletivos" e "difusos", isto é, que dizem respeito a grande número de
pessoas.

Deborah Duprat foi nomeada para a chefia do órgão
por Rodrigo Janot, antecessor de Raquel Dodge no comando do Ministério
Público Federal. Ela foi também vice-procuradora-geral na gestão de
Roberto Gurgel (2009-2013).
A reportagem da BBC procurou Duprat por meio da assessoria de imprensa na noite desta terça-feira, mas não conseguiu contato com ela.
"Se essa autorização (dos mandados de busca) for dada, será bom usá-la também em buscas coletivas nas avenidas Paulista e Luís Carlos Berrini, em SP, na avenida Vieira Souto, no Rio, e no Lago Sul, em Brasília. Afinal, a lei é para todos", escreveu o procurador Wellington Saraiva no Twitter, citando endereços nobres de Rio, São Paulo e Brasília.
"Imaginem um mandado de busca e apreensão genérico no setor de mansões em Brasília para combater a corrupção. Não dura duas horas antes do STF (Supremo Tribunal Federal) cassar. Se não vale para os ricos, não vale para os pobres", argumentou um procurador da Lava Jato, Carlos Fernando dos Santos Lima, no Facebook.
A reportagem da BBC procurou Duprat por meio da assessoria de imprensa na noite desta terça-feira, mas não conseguiu contato com ela.
Tiroteio
A peça assinada por Duprat é a primeira manifestação oficial do Ministério Público Federal sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro. Mas desde que o tema começou a ser discutido, vários procuradores já fizeram críticas à iniciativa do Palácio do Planalto nas redes sociais."Se essa autorização (dos mandados de busca) for dada, será bom usá-la também em buscas coletivas nas avenidas Paulista e Luís Carlos Berrini, em SP, na avenida Vieira Souto, no Rio, e no Lago Sul, em Brasília. Afinal, a lei é para todos", escreveu o procurador Wellington Saraiva no Twitter, citando endereços nobres de Rio, São Paulo e Brasília.
"Imaginem um mandado de busca e apreensão genérico no setor de mansões em Brasília para combater a corrupção. Não dura duas horas antes do STF (Supremo Tribunal Federal) cassar. Se não vale para os ricos, não vale para os pobres", argumentou um procurador da Lava Jato, Carlos Fernando dos Santos Lima, no Facebook.
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