Levantamento revela caos no controle de denúncias de violência sexual contra crianças

Denúncias podem chegar por diversos canais – mas raramente são as próprias crianças que denuncia
Umas das ligações
que mais marcaram a atendente Camilla*, que trabalha desde 2016 no
Disque-Denúncia (100), foi um caso de abuso sexual de um bebê de um ano
de idade.
Ela recebeu a ligação de uma pessoa - que não pode ser
identificada para preservar o anonimato garantido pelo serviço - dizendo
que, ao trocar a fralda da criança, encontrou seu órgão genital
machucado e com pus.
Segundo o relato, a menina estava sendo
abusada pelo padrasto, e a mãe não fazia nada porque não queria que o
marido fosse preso.
- Como falar sobre abuso sexual com as crianças
- Como escravos entravam na Justiça e faziam poupança para lutar pela liberdade
Camilla anotou todos os detalhes sobre a vítima - nome, onde
morava, informações sobre a família - e o caso foi encaminhado à polícia
do Estado para ser apurado.
Mas é impossível descobrir, de forma organizada e sistemática, o destino de denúncias graves como a relatada pela atendente.
A
BBC Brasil buscou dados para uma reportagem sobre o percentual de
denúncias de violência sexual contra crianças que resultavam em abertura
de inquérito e possível punição de culpados. Procurou também
informações centrais sobre crianças reportadas como vítimas em
denúncias, como saber se estão em segurança. Encontrou não dados, mas um
verdadeiro buraco negro de informações e descontrole estatístico por
parte das autoridades.
A reportagem, que envolveu dezenas de
telefonemas e envios de emails para autoridades federais e também em
todos os 26 Estados e o Distrito Federal, revela que nenhum órgão mapeia
denúncias e monitora o que acontece com elas.
Não há controle
consistente e padronizado em nível federal, estadual ou municipal que
acompanhe quantas eram procedentes, quantas se tornaram inquéritos
policiais, quantas chegaram à Justiça ou o que aconteceu com as
crianças.


Image caption-
Nenhuma entidade governamental brasileira reúne
números do combate ao abuso sexual de crianças de todos os Estados
A importância dos números
A
falta de dados centralizados prejudica o combate - já que o primeiro
passo para criação de políticas públicas que contra o crime é saber o
tamanho do problema, como ele costuma acontecer, se há maior ocorrência
em determinados Estados e que questões, em alguns casos culturais,
precisam ser combatidas em busca de uma solução.
"É muito difícil
pensar políticas públicas sem ter dados e estatísticas", afirma o
pesquisador Herbert Rodrigues, que foi associado ao Núcleo de Violência
da USP e é autor do livro Pedofilia e suas Narrativas.
"Os
dados sobre o assunto são um caos. Os órgãos não estão preparados para
lidar com o problema", afirma ele, que fez uma extensa pesquisa em
diversos bancos de dados para sua tese de doutorado.
Ele defende
que o poder público tenha um sistema exclusivo para monitoramento de
abuso sexual infantil a exemplo do que ocorre em países como os Estados
Unidos e o Reino Unido.
Em terreno britânico, os números
divulgados por diversas entidades governamentais são reunidos pela NSPCC
(sigla em inglês para Sociedade Nacional para a Prevenção de Crueldade
contra Crianças).
Nos EUA, diversas entidades reúnem esse tipo de
informação. O Departamento de Saúde federal tem um escritório
específico de cuidado às crianças que publica relatórios periódicos. E o
Crimes Against Children Research Center ("centro de pesquisa sobre
crimes contra crianças") também reúne dados nacionais - e o
acompanhamento das denúncias é feito pelo FBI, a polícia federal
americana.
Várias fontes, nenhum controle
No
Brasil, a primeira pergunta sem resposta diz respeito ao total de
denúncias de violência sexual contra crianças que chegam a diferentes
autoridades.
Elas podem chegar a delegacias de polícia
(especializadas ou não), ir direto ao Ministério Público, a conselhos
tutelares ou a Varas de Infância e da Juventude. Casos envolvendo crimes
virtuais são investigados pela Polícia Federal. Não há números
consolidados de número de denúncias feitas no país todo por nenhum
desses caminhos.
As suspeitas também podem chegar pelo
Disque-Denúncia e serem encaminhadas a algum desses outros canais. Só
por este caminho chegaram cerca de 9 mil denúncias no primeiro semestre
de 2017. Em 2016, foram 15.707. Os dados são do Ministério dos Direitos
Humanos, que mantém o serviço do Disque 100.
A segunda lacuna é com os dados sobre o que aconteceu com as denúncias que chegaram por esse caminho.
As
suspeitas são passadas individualmente para serem investigadas pelas
polícias estaduais ou por outras autoridades. Todos os casos são
repassados e, em tese, investigados. Mas como não há uma regra que
obrigue quem recebeu as denúncias de dar retorno, os feedbacks que
chegam são poucos.
O serviço só recebe retorno sobre o andamento
da apuração em 16% dos encaminhamentos na média, segundo o Ministério
dos Direitos Humanos.

Direito de imagem Getty Images Image caption Crimes contra crianças cometidos na internet são investigados pela Polícia Federal

Direito de imagem Getty Images Image caption Crimes contra crianças cometidos na internet são investigados pela Polícia Federal
Lacunas
Em
busca dessas informações sobre o destino das denúncias que chegam por
outros caminhos, a BBC Brasil procurou as polícias estaduais e também o
Ministério Público de todos os 26 Estados brasileiros e o Distrito
Federal.
Na maioria dos Estados, nem a própria polícia ou
secretaria de segurança agrupa essas informações. A ausência de dados
centralizados gera a impossibilidade de cobrança e acompanhamento de uma
esfera superior.
A BBC Brasil recebeu informações apenas da
Secretaria de Segurança Pública de Minas Gerais e dos Ministérios
Públicos de Santa Catarina, Distrito Federal, Acre, Rio Grande do Sul e
Santa Catarina.
As Secretarias de Segurança Pública de São Paulo,
Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina e os Ministérios
Públicos de Minas Gerais, Goiás e Ceará admitiram não ter os dados.
Os outros órgãos não responderam ou não deram explicações para não terem enviado as informações.
Retrato brutal
Os
únicos dados centrais que a BBC Brasil conseguiu identificar revelam a
brutalidade deste tipo crime, ou seja, quando vítimas vão parar em um
hospital com machucados, doenças ou outros problemas decorrentes do
abuso.
Em 2016, o sistema de saúde registrou 22,9 mil atendimentos
a vítimas de estupro no Brasil. Em mais de 13 mil deles - 57% dos casos
- as vítimas tinham entre 0 e 14 anos. Dessas, cerca de 6 mil vítimas
tinham menos de 9 anos.
As estatísticas são do Sinan, o sistema de
informações do Ministério da Saúde, que registra casos de atendimento
de diferentes ocorrências médicas desde 2011. É uma espécie de ponta do
iceberg do problema.
O sistema consolida dados tanto dos serviços de saúde pública quanto da rede privada.
"Crianças
e adolescentes de até 14 anos são mais vulneráveis à ocorrência de
estupro principalmente na esfera doméstica. Os autores da violência, na
maioria das vezes, são familiares e pessoas conhecidas", afirma a médica
Fátima Marinho, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da
Saúde.


Image caption
Os números mais consistentes são os do Ministério da
Saúde - que mostram as vítimas que chegaram ao sistema de saúde
Mas mesmo os números do Sinam, que oferecem um visão
central do problema, não retratam todos os casos de abuso sexual de
crianças que acabaram no sistema de saúde. Isso porque nem todos os
municípios do país reportam os casos, embora o procedimento seja
obrigatório.
A definição de estupro utilizada pelo Ministério da Saúde é a mesma adotada no âmbito penal. São notificados como estupro, por exemplo, conjunção carnal, masturbação, toques íntimos, a introdução de dedos ou objetos na vagina, sexo oral e sexo anal.
Nos casos de estupros de menores, os profissionais de saúde responsáveis pelo atendimento em hospitais devem comunicar as ocorrências aos conselhos tutelares locais.
A partir deste ponto, o sistema de saúde não faz mais o acompanhamento - portanto mesmo pelos números da área de saúde não há como saber quais desses casos chegaram à polícia ou à Justiça.
Para a delegada Kelly Cristina Saccheto, de São Paulo, "estatísticas são importantes, mas, para as investigações individuais, o que mais importa é ter dados suficientes no registro da ocorrência para que polícia abra o inquérito."
Segundo ela, muitas das denúncias chegam sem informações suficientes - como nome completo do acusado ou endereço - para que a polícia identifique os suspeitos.
"Nos casos que chegam à Justiça é possível ver, em muitos processos, tentativas de desqualificar e deslegitimar as crianças para inocentar o agressor. É reflexo de uma sociedade que tem baixa confiança nas crianças, onde elas são desconsideradas, como se não tivessem agência no mundo", afirma Herbert Rodrigues, pesquisador do Núcleo de Violência da USP.
O desembargador Eduardo Freitas Gouvea, da Coordenação de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, acredita que legislação existente é bem extensa e adequada para proteger as crianças - o que falta é sua aplicação.
"É necessário um trabalho de prevenção" afirma. "Hoje em dia o Judiciário é visto como caminho de resolução de tudo, mas é preciso que o Executivo aplique a lei e haja uma rede de proteção às crianças para evitar que os crimes aconteçam."
O fato da maior parte dos abusos - físicos e sexuais - virem das próprias famílias torna o problema mais complexo e difícil de ser resolvido, já que a criança fica completamente desamparada e sem o apoio justamente de quem deveria protegê-la.
"E é um tabu, ninguém quer falar sobre isso ou lidar com o problema real", diz Rodrigues.
Camilla, a atendente do Disque-Denúncia, diz que evita pensar no que aconteceu com as vítimas.
"Tento pensar que o importante é que a denúncia tenha sido feita. Já é o primeiro passo para resolver (o caso)."
*O nome foi trocado para proteger a identidade da entrevistada.
A definição de estupro utilizada pelo Ministério da Saúde é a mesma adotada no âmbito penal. São notificados como estupro, por exemplo, conjunção carnal, masturbação, toques íntimos, a introdução de dedos ou objetos na vagina, sexo oral e sexo anal.
Nos casos de estupros de menores, os profissionais de saúde responsáveis pelo atendimento em hospitais devem comunicar as ocorrências aos conselhos tutelares locais.
A partir deste ponto, o sistema de saúde não faz mais o acompanhamento - portanto mesmo pelos números da área de saúde não há como saber quais desses casos chegaram à polícia ou à Justiça.
Para a delegada Kelly Cristina Saccheto, de São Paulo, "estatísticas são importantes, mas, para as investigações individuais, o que mais importa é ter dados suficientes no registro da ocorrência para que polícia abra o inquérito."
Segundo ela, muitas das denúncias chegam sem informações suficientes - como nome completo do acusado ou endereço - para que a polícia identifique os suspeitos.
Vulnerabilidade
Se muitas vítimas adultas já não denunciam seus casos à polícia por medo de represálias ou de serem desacreditadas, as crianças estão ainda mais vulneráveis - e a chance de p problema nunca chegar às autoridades é maior, segundo especialistas."Nos casos que chegam à Justiça é possível ver, em muitos processos, tentativas de desqualificar e deslegitimar as crianças para inocentar o agressor. É reflexo de uma sociedade que tem baixa confiança nas crianças, onde elas são desconsideradas, como se não tivessem agência no mundo", afirma Herbert Rodrigues, pesquisador do Núcleo de Violência da USP.
O desembargador Eduardo Freitas Gouvea, da Coordenação de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, acredita que legislação existente é bem extensa e adequada para proteger as crianças - o que falta é sua aplicação.
"É necessário um trabalho de prevenção" afirma. "Hoje em dia o Judiciário é visto como caminho de resolução de tudo, mas é preciso que o Executivo aplique a lei e haja uma rede de proteção às crianças para evitar que os crimes aconteçam."
O fato da maior parte dos abusos - físicos e sexuais - virem das próprias famílias torna o problema mais complexo e difícil de ser resolvido, já que a criança fica completamente desamparada e sem o apoio justamente de quem deveria protegê-la.
"E é um tabu, ninguém quer falar sobre isso ou lidar com o problema real", diz Rodrigues.
Camilla, a atendente do Disque-Denúncia, diz que evita pensar no que aconteceu com as vítimas.
"Tento pensar que o importante é que a denúncia tenha sido feita. Já é o primeiro passo para resolver (o caso)."
*O nome foi trocado para proteger a identidade da entrevistada.
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