sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Saudades do dr. Camargo e o abismo entre WhatsApp e filas na rede pública


RESUMO DO ARTIGO:
Entre o enfrentamento de um câncer e as memórias dos primeiros contatos com um "médico da família", colunista aborda como a proximidade com os profissionais da saúde e a dedicação deles aos pacientes se mostra fundamental para o tratamento. E aborda o contraste do abismo social: enquanto médicos da rede privada conseguem manter contato até via WhatsApp, pacientes da rede pública enfrentam o calvário das filas e da falta de acompanhamento pessoal.

Já contei várias histórias pessoais e da minha família e agora vão mais duas relativas a cuidados médicos. 

Fui salva pela medicina, ultracomplexa, da morte e de uma sequela muito difícil de superar. Consegui me restabelecer, primeiro porque meu câncer calhou de ser de um tipo não muito destruidor; segundo porque tive recursos para ser atendida pelos melhores médicos do Rio de Janeiro e finalmente, dizem, porque me submeti ao calvário dos tratamentos que deixam qualquer um na lona, arrasado, o cabelo caindo, o corpo exangue. Dor, medo e pânico regados a explicações nem sempre compreensíveis dos médicos. 

Vivi momentos difíceis, mas não reclamo de nada e nem reclamei dos meus médicos. Eles foram perfeitos. Os que me operaram me salvaram de um tumor atípico que se instalou no meu abdômen entre um osso do sacro, o promontório, e o retossigmóide. Retirado, restava saber de onde vinha, pois não havia sinais de metástase. Descobriu-se que era um tumor primário e a célula não era de intestino. Era uma célula epitelial localizada fora da sua origem. Provavelmente, uma célula do canal anal que na minha formação foi parar no lugar errado. Desenvolveu-se ali um tumor. Pronto. 

Fui submetida a um tratamento, mas meu oncologista me disse: Yvonne, se você tivesse 80 anos eu não faria mais nada, porém como você tem ainda uns bons quinze anos pela frente (eu tinha 65 anos na ocasião), vamos fazer como prevenção. Fiquei firme, mas doeu saber que não me restava muito tempo para viver. Pela primeira vez me defrontava com a consciência dos limites da vida. Era o caminho do fim e deveria ser percorrido sem a recorrência de um tumor em local tão delicado. 

Fui salva, novamente, dessa vez da sequela do tratamento, por dois médicos jovens, que citarei o nome para agradecê-los, e porque me lembraram dr. Camargo. Luiz Guilherme de Miranda e Silva e Luciana Marzan me livraram de uma vida triste e cheia de limites. Eu simplesmente estaria mil anos mais velha se não fossem eles. Mas por que me recordaram dr. Camargo? Porque eles falam comigo. Não pessoalmente sempre, mas a qualquer momento por WhatsApp. Ah, esse aplicativo substituiu em parte a doçura do dr. Camargo. Fico reconfortada por ser cuidada por estes dois médicos jovens, formados pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, estudiosíssimos, que mesmo trabalhando na maior adversidade tratam seus pacientes com grande deferência. Não ficam devendo nenhuma resposta aos meus apelos e sinto que gostam de mim e me respeitam, embora eu seja uma senhora um tanto desbocada e desaforada. 

Mas quem era dr. Camargo? Vamos lá. Quando meu pai morreu ficamos os nove irmãos órfãos de mãe e de pai, morando em uma casa grande. Como iríamos fazer se não fossem os amigos de meus pais que eram muitos e nos socorreram? Dr. Camargo Rocha foi um deles. Era um homem simples. Tinha também nove filhos e quando ficamos sós, dr. Camargo apareceu com sua maleta de couro e seu semblante calmo. 

O doutor não tinha carro. Andava de ônibus e chegava em nossa casa sempre que precisávamos.  Bastava uma ligação para a casa dele ou para uma instituição em que trabalhava, a Obra do Berço, acho eu, e lá vinha ele saltando do ônibus na Praça Belfort Vieira, batendo palmas diante do portão que nunca ficava fechado. Minutos depois estava na sala, com o aparelho de pressão, o estetoscópio e um enorme sorriso diante das nossas dores, febres e outras doenças mais prosaicas. Nem sempre o remédio prescrito funcionava, mas que alívio ver o médico entrando e olhando um de nós com febre alta ou com dor em alguma parte do corpo. A receita em geral era simples: uma aspirina, não comer galinha, nem tomar suco de laranja, e tudo iria ficar bem. 

Saudades do dr. Camargo! Ele não dispunha de muitos recursos, mas nos amparava como um pai e dava uns conselhos simples. Sinto falta do dr. Camargo. Hoje, se não fosse o WhatsApp eu ficaria muito aflita e dou graças a Deus por meus médicos abusarem desse instrumento que me faz lembrar a maleta de médico, o sorriso e o carinho com que dr. Camargo nos atendia naqueles muitos momentos de aflição nos anos 1960, anos de antibiótico e de penicilina, sem exames complexos em laboratórios suntuosos. 

Tenho sorte e, por isso, tenho pena dos pacientes de hoje, especialmente das mães que lutam para falar com o pediatra de seus filhos e dos doentes graves que não têm acesso ao seu oncologista. Há médicos, e muitos, que de fato nunca atendem aos chamados, mesmo que cobrem altas somas em dinheiro por suas consultas. São ocupadíssimos. Para não falar dos doentes que enfrentam as filas dos ambulatórios sem médicos dos hospitais públicos do nosso país.

Para conseguir marcar consulta com médico no ambulatório no Hospital Ouro Verde em Campinas













(FOTO: Fila para conseguir marcar consulta com médico no ambulatório no Hospital Ouro Verde em Campinas - CRÉDITO: Arquivo/Reprodução/ EPTV)
Yvonne Maggie
Colunista
G1

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