quarta-feira, 13 de maio de 2015

Livro conta jornada de escravo que era poliglota e viveu no Brasil e EUA

Baquaqua ditou história de sua vida a um escritor norte-americano.

Livro vai ganhar a primeira edição brasileira, a ser lançada neste ano.

Katherine CoutinhoDo G1 PE
Em sua autobiografia, Baquaqua revela como era ser escravo no Brasil (Foto: Reprodução)






Em sua autobiografia, Baquaqua revela como era ser escravo no Brasil; na imagem, aparece com o escritor Samuel Moore (Foto: Reprodução)
Um homem culto, que falava várias línguas e sabia ler e escrever em árabe. Esse é o surpreendente perfil de um escravo que viveu em terras brasileiras: Mahommah Gardo Baquaqua. A história de sua incrível jornada está ganhando a primeira versão em português pelas mãos do professor e doutorando pernambucano Bruno Véras, junto com o professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Nielson Bezerra.
Baquaqua ditou a história de sua vida para o escritor Samuel Moore, que atuou como revisor e editor. O relato inclui o primeiro período como escravo no Brasil e depois sua fuga nos Estados Unidos, e foi publicado em 1854, em Detroit. A publicação ganhou o título de "An interesting narrative. Biography of Mahommah G. Baquaqua". Em 2001, pelas mãos dos professores canadenses Paul Lovejoy e Robin Loy, a história foi republicada em uma versão ampliada, que inclui uma longa introdução trazendo o contexto histórico, o relato de Baquaqua e também as cartas que ele trocou com religiosos, missionários e abolicionistas.
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Noite e dia eram iguais para nós, o sono nos sendo negado devido ao confinamento de nossos corpos"
Baquaqua sobre o navio negreiro





A versão brasileira será uma tradução e atualização desse livro de 2001, com previsão de lançamento no final deste ano pela editora Civilização Brasileira. A edição será acompanhada de toda a documentação levantada pelos pesquisadores brasileiros e canadenses em sua revisão - como cartas e mapas.
"Ele foi o único escravo africano que escreveu seu relato autobiográfico sobre a escravidão no Brasil. Esse ato de escrever a sua vida é muito comum nos EUA, no Canadá, onde tem uma linha literária de relatos de escravos, o que era usado como propaganda pelos abolicionistas", explicou Véras.
Capturado no Benin, no oeste africano, Baquaqua era filho de um comerciante muçulmano e teve formação educacional com a leitura do Corão, o livro sagrado do islamismo. Em sua autobiografia, ele relata o terror de ser acorrentado e jogado em um porão de um navio negreiro, sem imaginar qual queria o seu destino.
"Fomos arremessados, nus, porão adentro, os homens apinhados de um lado, e as mulheres de outro. O porão era tão baixo que não podíamos ficar de pé, éramos obrigados a nos agachar ou nos sentar no chão. Noite e dia eram iguais para nós, o sono nos sendo negado devido ao confinamento de nossos corpos", diz em seu relato.
Capa da autobiografia de Baquaqua, ditada a Samuel Moore (Foto: Reprodução)
Capa da autobiografia de Baquaqua, ditada a
Samuel Moore (Foto: Reprodução)
Ele foi desembarcado em 1845 em uma praia de Pernambuco, entre Goiana e a Ilha de Itamaracá, segundo apontam as pesquisas. "Nesse ano, já era proibido o tráfico de pessoas vindas da África. Ele foi desembarcado ilegalmente e trabalhou como escravo em Pernambuco e no Rio de Janeiro por mais de dois anos", explica Véras.
As angústias de ser escravo em um país estranho estão presentes na autobiografia e revelam uma percepção única sobre ser escravo. Muçulmano, Baquaqua se viu obrigado a professar o catolicismo, uma vez que era a religião do dono.
Os abusos fizeram inclusive ele pensar em suicídio. "No relato, ele ajuda a gente a desconstruir uma série de estereótipos de africanos que vieram para o Brasil escravizados. Ele se mostra um africano altivo, e também fala de suas fraquezas, da tentativa de suicídio", aponta o historiador.
Vendido para o dono de um navio no Rio de Janeiro, o escravo traz o retrato da "morte social" pela qual os africanos passavam ao serem trazidos ao Brasil.
Foi em uma viagem com destino a Nova York, nos Estados Unidos, que ele vislumbrou uma esperança. "Ele descobre no navio, com um marinheiro inglês, que não existe mais escravidão em Nova York. Chegando ao porto, ele correu com outro colega e foi preso", conta Véras. "A primeira palavra que meus dois companheiros e eu aprendemos em inglês foi F-R-E-E (L-I-V-R-E); ela nos foi ensinada por um inglês a bordo e, oh!, quantas e quantas vezes eu a repeti", relata Baquaqua na autobiografia.
A primeira palavra que meus dois companheiros e eu aprendemos em inglês foi F-R-E-E (L-I-V-R-E); ela nos foi ensinada por um inglês a bordo e, oh!, quantas e quantas vezes eu a repeti"
Baquaqua
A prisão foi, na verdade, um processo de libertação. Havia o dilema na justiça americana se Baquaqua deveria ser devolvido a seu dono, já que era uma embarcação brasileira, ou se deveria ser liberto, já que não havia escravidão no país. Os pesquisadores encontraram todo o processo quando pesquisaram nos arquivos da justiça americana.
"Ele fugiu da prisão, foi para o Haiti, onde morou dois anos. Depois foi para a Central College, no estado de Nova York, onde estudou inglês durante três anos. Ele já sabia escrever em árabe, o irmão mais velho dele era professor de religião na cidade que ele nasceu", conta Véras.
Foi nesse ponto da história que o escritor Samuel Moore entrou como revisor e editor. Como o inglês que Baquaqua sabia era básico, para a finalização de um livro foi necessária uma linguagem mais elaborada, o que exigiu a figura do editor. "Baquaqua circulou por vários espaços ligados a igrejas cristãs que defendiam a ideia abolicionista. Depois da publicação, ele fez várias palestras nos Estados Unidos porque, para além da propaganda abolicionista em si, ele queria também promover o livro para conseguir fundos e voltar para a África. Mas o livro ajudou a causa sim, e ele conhecia e se correspondia com altos nomes abolicionistas nos Estados Unidos", diz Bruno Véras.
Fora trazer as vivências de um ex-escravo, em uma história que se assemelha ao filme 'Doze Anos de Escravidão', vencedor do Oscar, a autobiografia de Baquaqua traz ainda uma visão diferenciada da escravidão do Brasil. "O relato possibilita entender a história desse africano para além da escravidão. Como ele construía laços apesar da escravidão, é pesquisar essas pessoas para além da escravidão", explica o professor pernambucano.
Professor pernambucano Bruno Véras participa da atualização e tradução da obra sobre Baquaqua (Foto: Katherine Coutinho / G1)Professor pernambucano Bruno Véras participa da atualização e tradução da obra sobre Baquaqua (Foto: Katherine Coutinho / G1)
Atualização
A história foi revisitada pelos historiadores Paul Lovejoy e Robin Loy e resultou no livro lançado em 2001, com cartas e documentos sobre Baquaqua que ajudam a aprofundar a biografia desse personagem histórico. A obra agora está sendo atualizada com ajuda dos dois professores brasileiros e, finalmente, traduzida para o português.

"Essa história deveria ter sido traduzida para o português há muito tempo. Baquaqua chama a atenção por ser um muçulmano do interior da África. Sua história pessoal é fascinante, por isso é interessante ser levada para escolas em vários países", afirma o historiador Paul Lovejoy, em entrevista por e-mail ao G1.
O trabalho de tradução é feito junto com o Projeto Baquaqua, onde os pesquisadores brasileiros se unem aos canadenses para percorrer os passos do africano no Brasil, nos Estados Unidos, no Haiti e na Europa.
"Aqui no Brasil encontramos documentos no arquivo municipal de Olinda relacionados ao dono da embarcação em que Baquaqua trabalhava. Tentar construir uma biografia de um escravo é muito mais complexo que construir a história de um rei, de um general, por causa da dificuldade de acesso a documentos de escravos. Os registros produzidos sobre ele eram escassos, geralmente as pessoas falando sobre ele. Temos que trabalhar documentos ao seu redor. Quando encontramos um padrinho, um afilhado, conhecemos mais sobre ele", explica Véras.
O próximo passo da equipe inclui uma viagem à África, provavelmente em 2016, em busca de rastros de Baquaqua. "Ninguém sabe ao certo se ele conseguiu voltar para casa. Vamos buscar saber se há registro dele por lá", aponta o professor pernambucano, que este ano embarca para o Canadá, onde vai fazer seu doutorado na York University sobre Baquaqua, tendo como orientador o professor Paul Lovejoy.
Pesquisadores estiveram em locais por onde Baquaqua passou em busca de documentos sobre ele (Foto: Bruno Véras / Acervo pessoal)Pesquisadores estiveram em locais por onde Baquaqua passou em busca de documentos sobre ele, como a Ilha de Itamaracá (Foto: Bruno Véras / Acervo pessoal)

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