terça-feira, 8 de novembro de 2011

Ocupar prédios é preciso. Porque gente vale mais que barata

Mais de 3,5 mil pessoas ligadas a movimentos por moradia ocuparam, na madrugada de 
segunda, dez prédios abandonados na capital paulista. A ação foi coordenada por 14 
movimentos por moradia, entre eles o Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), a 
Unificação das Lutas dos Cortiços (ULC) e o Movimento de Moradia do Centro (MMC). 
Eles também denunciam acordos não cumpridos com o poder público. 

Entre as demandas comuns a todas as 14 entidades envolvidas na ocupação, estão 
uma solução para os que foram vítimas da desapropriação dos Edifícios São Vito
 e Mercúrio, a garantia de 5 mil unidades habitacionais para o atendimento no
 Programa de Locação Social e de 5 mil atendimentos no Programa Bolsa Aluguel 
para situações emergênciais e o atendimento da demanda dos movimentos de mora
dia que atuam no Centro dos 53 prédios que a Prefeitura afirma estar desapropriando.

O déficit qualitativo e quantitativo de habitação poderia ser drasticamente reduzi
do se esses imóveis trancados por portas de tijolos pudessem ser desapropriados
 e destinados gratuitamente para quem precisa. Mas, ao invés disso, o governo fede
ral investe em programas que facilitam o financiamento de novos empreendimentos,
 como o “Minha Casa, Minha Dívida”, quando poderiam estar entregando às famílias 
de baixíssima renda apartamentos existentes que hoje só servem para criar ratos e
 baratas.

Enquanto isso, Estado e município não têm coragem de enfrentar os grandes latifun
diários urbanos. Há prédios que devem milhões de Imposto Predial e Territorial Ur
bano (IPTU) e poderiam ser alvo do Decreto de Interesse Social, uma vez que perma
necem vagos por anos. Mas em uma sociedade cuja pedra fundamental são a into
cabilidade da propriedade privada e a possibilidade de lucro e não o respeito à vida isso
 fica difícil.

Por isso, o apoio às ocupações que começaram nesta segunda em São Paulo é a dife
rença entre a civilidade (e a consciência de que o respeito à dignidade huma
na e não a antropofagia é que deveria nos unir) e a barbárie (de pessoas morando
 em palafitas sobre córregos de merda, enquanto outras vivem em triplex com mais
 de mil metros quadrados).

Já disse isso aqui antes: a área central de São Paulo é alvo prioritário dos movimen
tos por moradia por uma razão bem simples: porque já tem tudo, transporte, 
cultura, lazer, proximidade com o trabalho. Ao longo do tempo, fomos expulsando 
os mais pobres para regiões cada vez mais periféricas. Eles, que possuem 
menos recursos financeiros, gastam mais tempo e mais de sua renda com trans
porte do que os mais ricos que ficaram nas áreas centrais (com exceção dos 
condomínios-bolha espalhados no entorno, com suas dinâmicas de segregacionismo
 próprias). 

Cortiços em regiões retratadas no passado por Alcântara Machado no livro “Brás,
 Bexiga e Barra Funda” e também nos antes requintados Campos Elísios abri
gam dezenas de famílias. Sem o mínimo de saneamento básico, às vezes sem água 
e sem luz. A maioria dos moradores desses locais prefere continuar assim, pois trans
porte é o que não falta e a casa fica próxima ao trabalho – ao contrário do que 
acontece em bairros da periferia, onde o trajeto até o centro chega a levar três ho
ras, dentro de ônibus superlotados.

Cresci no Campo Limpo, bairro periférico de São Paulo. Fiz o ensino médio técnico no
 Pari, perto da Rodoviária Tietê, do outro lado da capital. Mais de duas horas para 
cruzar a cidade de transporte público. Depois da faculdade, sem carro, mantive uma
 rotina longa até me mudar para o principado paulistano do Sumaré. Contudo, mesmo 
os trajetos intermináveis eram fichinha para quem foi lançado às rebarbas da cida
de, como o Jardim Pantanal ou o Grajaú – de onde saem boa parte daquela “gente 
diferenciada” que vive para servir.

A carta dos movimentos por moradia endereçada ontem ao governador Geraldo
 Alckmin e ao prefeito Gilberto Kassab desabafa: “Realizamos os principais serviços
 para o bom funcionamento desta cidade, entretanto nossas famílias estão espre
midas por um conjunto de necessidades. Lutamos e trabalhamos muito para sobre
viver, mas a cidade regida pelas leis do mercado, especialmente imobiliário, impe
de que nossa renda assegure nossos direitos. Sabemos que a situação de nossas 
famílias decorre da injustiça histórica. Sabemos também, que nas circunstâncias
 atuais, nosso sofrimento não tem razão de continuar.Por isso, nos organizamos e 
ocupamos esses imóveis abandonados, sem função social respaldados por
 nossas Leis, que assegure nosso direito à moradia e por meio de nosso direito de agir”.

José – o nome é fictício, pois o morador não quis se identificar – morava com a 
mulher, filhos, cunhado e primos em um velho casarão, semidestruído, então 
propriedade da Universidade de São Paulo, na Rua Havaí, localizada no caro bairro
 de Perdizes. O local não possuía a mínima segurança, uma vez que as tábuas
 caíam ao se caminhar pela casa. Mesmo assim, José não arredava pé de lá. “Se
 sair não tenho para onde ir.” Passaram-se os meses e a universidade mandou demolir
 a casa. Para onde foram José e o populacho que lá vivia? Ninguém nunca 
soube dizer. Provavelmente engrossam a densidade demográfica de outro cortiço. Ou 
passaram frio em algum lugar precário. Que logo seria igualmente derrubado. 

A recuperação da área central de São Paulo não se restringe a uma valorização esté
tica das ruas, edifícios e bens culturais. Inclui também o repovoamento do local, tra
zendo vida à região, com incentivos para o estabelecimento das classes média e baixa.
 O que tem sido feito até agora é o contrário: expulsa-se o povão e ergue-se mo
numentos à música e às artes. 

Sabe o artigo 6o da Constituição Federal que garante o direito à moradia? Então,
 é mentira. Do mesmo tamanho daquela anedota contada no artigo 7º que diz que o
 salário mínimo deve ser suficiente para possibilitar “moradia, alimentação, educação, 
saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. 

Função social da propriedade? Por aqui, isso significa garantir que a divisão de clas
ses sociais permaneça acentuada como é hoje. Cada um no seu lugar. Afinal de contas
, viver em São Paulo é lindo – se você pagar bem por isso.


Mais informações sobre o Movimento de Luta por Moradia, clique aqui.
Da: Folha 13

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