A MULHER SEM ROSTO









Parecia um fantasma indo e vindo naquele trem. Coberta por um lençol branco dobrado, e amparada por uma senhorinha de cabelos brancos que eu imaginava ser sua mãe. Na minha pouca idade (aos 7 anos) a visão daquela criatura mexia muito com o meu interior. Era uma sensação horrível, um misto de medo e curiosidade. Eu ficava durante algumas semanas com a alma atormentada após voltar daquelas viagens. Vivi até os meus 12 anos me questionando sozinha, tentando encontrar uma resposta. Não conseguia imaginar o motivo pelo qual a passageira do "meu trem" não era normal igual a todo mundo. Obviamente se fosse hoje eu iria me aproximar, fazer amizade, saber se precisaria de ajuda e perguntar-lhe discretamente sobre o que teria ocorrido em sua vida a ponto de deixá-la impossibilitada de mostrar o rosto. 

Mas não, naquele tempo nada ou quase nada podia ser questionado, principalmente a dúvida de uma criança, jamais mereceria por parte dos adultos algum tipo de resposta nem atenção. Foram muitas as vezes que viajei no mesmo trem com aquela mulher-fantasma. Em quase todas as minhas viagens, em determinada cidade lá vinha ela e a mãe e entravam no trem. Eu, de tanto medo nem suportava sentar próximo às mesmas. Na minha doce ingenuidade era como se eu temesse alguma doença contagiosa, era essa a sensação.  Sempre tive familiares no Estado vizinho (RN), meu pai era de lá. E o trem era o único meio de transporte interestadual no final daquela década de 60.

 Algum tempo depois, aos meus 11 anos, após a morte de meu pai, fui morar em Natal. E coincidentemente numa bela tarde de domingo, na casa de uma amiga que morava na mesma rua que eu, quase desmaiei ao me deparar frente à frente com o rosto desnudo da mulher sem rosto. Aquele momento (1969) lembro como se fosse hoje, ela estava sem o lençol que a protegia no trem dos olhares das dezenas de passageiros. Aquele lençol era a máscara  que ocultava sua face esquisita, deformada...

Para mim foi um susto muito grande. Jamais eu imaginava me deparar com uma cena daquela. Quase entrei em pânico ao visualizar aquela fisionomia estranha. Um rosto sem detalhes, sem nariz, olhos nem boca, apenas uns orifícios no lugar desses órgãos. Nos olhos ainda pude ver, ligeiramente que eram bem azuis naquelas pequenas cavidades arredondadas. Havia ausência total de traços de um rosto humano normal. 

Atônita, procurei me afastar dali rapidamente. Nem tive condições de falar com a minha amiga, a não ser apenas dá um tchau e sair correndo para casa. Nunca perguntei-lhe nada a respeito, nem tão pouco se ela entendera minha reação, pois eu havia acabado de entrar em sua casa. Evitei, a partir daquela tarde de domingo, tocar no assunto que me dava medo. Tentei esquecer.

Hoje, eu recordo esse fato e consigo estabelecer um paralelo entre a mulher sem rosto (de verdade) e as mulheres (sem rosto) que conheço. Muitas estão com as feições transformadas pela dor, pelo abandono, pela discriminação. São mulheres  de rostos deformados, de olhos tristes e infelizes, marcadas pelo sofrimento resultante de um casamento ou de um relacionamento dos quais elas não conseguem se libertar. São feições enrugadas, adquiridas, tatuadas no corpo e na alma não apenas por conta da idade (muitas são bem mais jovens que eu), mas pela profunda falta de respeito, pelo machismo, pelo ciúme e ignorância, e principalmente pela falta de amor da parte de quem um dia jurou-lhes amor eterno!!!

Direto da sala de Redação de minha memória, em 03/01/2012, às 22:57h, horário de Brasília. 


Já publicado no Recanto das Letras.


Aparecida Ramos

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