segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

É possível apagar as lembranças traumáticas do cérebro?

 

Ilustração de uma cabeça e conexões do cérebro humano

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Armazenamos muitas lembranças, mas o cérebro tem uma certa facilidade de guardar as ruins

Há anos que não se tem notícias de Ulisses. Ele poderia ter morrido na Guerra de Troia. O filho dele, Telêmaco, visita Menelau e a esposa, Helena, em busca de informações sobre o pai. Lá, ele participa de um banquete no qual Menelau relembra as façanhas do rei de Ítaca.

Nesse momento, os convidados caem em uma profunda tristeza ao se lembrarem dele. Mas Helena ordena que os criados sirvam nepenthes, a bebida do esquecimento.

"Quem toma esta bebida acalmará todos os seus males e será incapaz de sentir tristeza, pois faz esquecer as lembranças dolorosas."

Eis que a felicidade volta aos ali presentes.

É assim que Homero narra o episódio no canto IV de Odisseia. Mas é tão fácil esquecer uma memória traumática? Existe alguma evidência científica que prove isso?

Por que essa facilidade de lembrar do que é ruim?

Nossa memória guarda muitas das coisas que acontecem com a gente durante o dia, mas grande parte acaba sendo esquecida.

No entanto, temos certa facilidade em guardar as recordações ruins, apesar de não ser um processo gratuito: nosso sistema nervoso precisa modificar certos circuitos neurais, com a consequente síntese de proteínas e gasto de energia celular.

É curioso: todo esse esforço para guardar uma memória que certamente nos deixará sequelas psicológicas e, no pior dos casos, nos causará transtorno de estresse pós-traumático. Por quê?

Parte da explicação se baseia no fato de que estas experiências negativas estão fortemente associadas a emoções. E nosso cérebro classifica e armazena memórias com base em sua utilidade, considerando que aquelas vinculadas a emoções são úteis para nossa sobrevivência.

Se ficamos com muito medo ao atravessar uma área perigosa da cidade, o cérebro armazena isso para que não façamos novamente.

Ilustração de um cérebro e peças de um quebra-cabeça

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A neurociência parece ter encontrado algumas peças do quebra-cabeça para desvendar como é o processo de salvar ou deletar uma memória

A situação se complica quando a experiência é realmente traumática. Neste caso, nosso órgão pensante tende a esconder essas experiências, mas as armazena sem processar. Como um mecanismo rápido de defesa, tudo bem.

O problema surge quando, por qualquer motivo, as lembranças ruins reaparecem. Aí o dano pode ser muito grande por se tratar de experiências que foram arquivadas "cruas".

Luz e som para eliminar experiências traumáticas

A neurociência parece ter encontrado algumas peças do quebra-cabeça que podem nos ajudar. Até mesmo o menor fator poderia desempenhar um papel importante na hora de determinar se guardamos ou excluímos uma memória.

Por exemplo, a luz, algo tão comum e que afeta a todos, inclusive as moscas (Droshopila melanogaster), que são capazes de esquecer acontecimentos traumáticos quando mantidas no escuro. E tudo graças a uma proteína que atua como moduladora da memória e que — esta parte nos interessa — está evolutivamente bastante conservada.

Em outras palavras, a proteína está presente em todos os animais, inclusive em humanos. A explicação pode ser relativamente simples: a luz atua como um modulador das funções cerebrais, incluindo a manutenção da memória.

Sono, processador da memória

Os sons são outra peça importante, especialmente quando dormimos. O sono é essencial para o processamento da memória.

Durante o dia nosso cérebro instala aplicativos (memórias), e à noite os atualiza. Desta forma, a memória recém-adquirida seria transformada em memória de longo prazo durante o descanso noturno.

Seguindo este raciocínio, também poderíamos fazer o contrário: usar estímulos, neste caso auditivos, para desinstalar as experiências negativas, conforme asseguram pesquisadores da Universidade de York, na Inglaterra, em um estudo recente.

Apesar de estudos deste tipo ainda estarem em fase experimental, poderiam ser muito úteis para desenvolver futuras terapias que permitam enfraquecer memórias traumáticas baseadas em estímulos auditivos durante o sono.

Drogas promissoras

Alguns de vocês podem estar se perguntando se no futuro serão vendidas pílulas de luz ou pastilhas de som que nos ajudem a esquecer as lembranças ruins. Não temos a resposta, mas temos evidências científicas de que alguns medicamentos já existentes poderiam contribuir para apagar a memória traumática.

O propranolol, por exemplo, medicamento usado no tratamento da hipertensão arterial e que permite a animais usados em experimentos de laboratório esquecer um trauma aprendido.

O segredo poderia estar em uma proteína nos neurônios que determina se as memórias devem ser alteradas ou não. Se essa proteína for quebrada, as memórias se tornam modificáveis; ​​e, se ela estiver presente, são mantidas.

Apesar de serem trabalhos realizados em experimentos com animais em laboratório, são um excelente modelo para o estudo do sistema nervoso. O cérebro humano, embora semelhante, é mais complexo. Vamos a ele então.

Um anti-inflamatório como escudo contra memórias intrusivas

Comprimidos de analgésico

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Há estudos que determinam que a hidrocortisona, um anti-inflamatório, pode favorecer o processo de esquecimento de memórias intrusivas.


Para ler a matéria completa, click no link:

https://www.bbc.com/portuguese/geral-64143909


'A pior situação humanitária que já vi': os relatos de médico que foi atender os yanomami

 

Em visita ao território yanomami, Lula diz que a situação é 'desumana'

O médico tropicalista André Siqueira, do Instituto Nacional de Infectologia da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), estava em terras yanomami desde segunda-feira (16/1). Nos últimos dias, ele diz ter testemunhado "a pior situação de saúde e humanitária" que já viu.

Enviado ao local pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas-OMS), o especialista em malária visitou o polo-base de Surucucu, em Roraima, e passou por outras comunidades da região.

"Nosso objetivo era fazer um diagnóstico rápido da situação e criar um plano de ação para mitigar ou resolver essas questões, em parceria com o Ministério da Saúde e as lideranças yanomami", contextualiza o médico, em entrevista à BBC News Brasil.

"O que vimos foi uma situação muito precária em termos de saúde, com pacientes acometidos por desnutrição grave, infecções respiratórias, muitos casos de malária e doenças diarreicas. Junto a isso, uma escassez de equipes e de estrutura", relata.

Siqueira diz que se deparou com casos de desnutrição extrema em famílias inteiras. Emocionado, o médico confessou que é muito difícil enfrentar essa situação, que classifica como "catastrófica" e "desastrosa".

"Presenciar na prática esse nível de sofrimento é muito pesado. Na hora a gente encara e vai no automático. Mas depois, quando cai a ficha, vemos como é uma situação difícil."

"A gente compara com nossos filhos. Vemos os pais, as crianças e toda a comunidade sofrendo. E, mesmo diante de tanta dificuldade, há um senso de coletividade muito grande. Mesmo as pessoas com fome, quando recebem algum alimento, tentam dividir com quem está ali", completa.

 O aumento de casos e mortes por desnutrição e malária na reserva indígena yanomami ligou o sinal de alerta do governo federal e motivou um decreto de Emergência de Saúde Pública neste território.

Ao lado de uma comitiva de ministros e secretários, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez uma visita à região no sábado (21/1) e classificou a situação como "desumana".

O Ministério da Saúde anunciou uma série de ações para tentar controlar a crise — como a instalação de um hospital de campanha e o envio de insumos e profissionais de saúde.

Já o Ministério da Justiça determinou a abertura de um inquérito para "apurar o crime de genocídio" na região.

O governo calcula que 570 crianças yanomami morreram nos últimos quatro anos.

Mas como a situação dos yanomami chegou a este ponto? Entenda a seguir os principais elementos que ajudam a explicar esse cenário de crise sanitária — e o que está sendo feito para revertê-lo.

A maior reserva indígena do Brasil

Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), a terra indígena yanomami é habitada por oito povos, possui cerca de 26,7 mil habitantes e compreende uma área de 9,6 milhões de hectares (o equivalente a 13,8 mil campos de futebol).

Ela foi homologada e reconhecida pelo governo brasileiro em 1992, por meio de um decreto assinado pelo então presidente Fernando Collor (PTB).

O território está localizado entre os Estados de Roraima e Amazonas ao norte, na divisa de Brasil e Venezuela.

Entre os povos que habitam o local, estão os yanomami, os ye'kwana, os isolados da Serra da Estrutura, os isolados do Amajari, os isolados do Auaris/Fronteira, os isolados do Baixo Rio Cauaburis, os isolados Parawa u e os isolados Surucucu/Kataroa.

O ISA também destaca quatro "riscos potenciais e problemas existentes" na terra indígena yanomami: os garimpeiros, os pescadores, os caçadores e os fazendeiros.

Entre essas ameaças, o garimpo se tornou uma das grandes preocupações dos habitantes da região e de especialistas no tema.

O relatório Yanomami Sob Ataque, publicado em abril de 2022 pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye'kwana, com assessoria técnica do ISA, faz um balanço da extração ilegal de ouro e outros minérios nessa região.

"Sabe-se que o problema do garimpo ilegal não é uma novidade na TIY [Terra Indígena Yanomami]. Entretanto, sua escala e intensidade cresceram de maneira impressionante nos últimos cinco anos. Dados do MapBiomas indicam que a partir de 2016 a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, de 2016 a 2020 o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3.350%", aponta o texto.

O levantamento das associações mostra que, em outubro de 2018, a área total destruída pelo garimpo somava pouco mais de 1.200 hectares.

"Desde então, a área impactada mais do que dobrou, atingindo em dezembro de 2021 o total de 3.272 hectares", continua a publicação.

Pista de pouso em terra yanomami que é usada por garimpeiros ilegais

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Pista de pouso em terra yanomami que é usada por garimpeiros ilegais

Segundo os autores, há vários motivos para essa expansão, como "o aumento do preço do ouro no mercado internacional", "a falta de transparência na cadeia produtiva do ouro", "a fragilização das políticas ambientais e de proteção a direitos dos povos indígenas" e "o agravamento da crise econômica e do desemprego no país", entre outros.

O texto também chama a atenção para o fato de que "o garimpo dos dias atuais é uma atividade financiada por empresários com alta capacidade de investimento e que concentram a maior parte da riqueza extraída ilegalmente da floresta yanomami".

Por fim, o relatório das associações aponta que o avanço do garimpo sobre as terras indígenas está atrelado a "perdas consideráveis" na qualidade de vida dos moradores da região, com pioras nos indicadores de violência, saúde e suporte social.

O Atlas da Violência 2021, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revela que Roraima — onde fica parte da terra yanomami — tem uma das maiores taxas de violência letal contra indígenas, ao lado de Amapá, Rio Grande do Norte e Mato Grosso do Sul.

Para ler a matéria na íntegra, acesse:

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64365655

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Acontece também com você??

          Ela vive dentro de mim, habita meu universo, comemora com euforia cada um dos meus "sucessos" e chora junto os meus insucessos. Ela descansa em meus sonhos, recolhe minhas lágrimas quando um pouco cansada das lidas diárias, esqueço de voltar para mim. Ela sabe que à medida que amadureço, cresço, viro mais exigente e, de muitas coisas e de algumas gentes, me fiz descrente. A menina que vive em mim tem um importante papel: ela me incentiva a abraçar cada vez mais a vida, a ir sempre mais longe, embora dando os passos que as pernas alcançam. Aqui, parafraseando minha avó materna: "Tenham cuidado para não dar o passo maior que a perna". E minha avó tinha toda razão.

           Outro dia descobri que minha menina mora também nas minhas indecisões e distrações. É presença marcante, cadeira cativa na minha ousadia, na minha capacidade de existir e de persistir. É uma incrível caçadora de esperanças, além disso vive plantando e cultivando sorrisos e se derramando em afetos... aos de perto e aos de longe (alguns raros) em quem dar pra confiar. O melhor de tudo é saber que ela não exige nada de mim além de me ver sendo gentil, tratando os outros com delicadezas, espalhando pétalas em palavras e afetos; recriando os momentos, cultivando a ternura, porque ela sabe o quanto vale "ser", sabe que isso é muito mais que "ter". Sabe que muitos têm, mas não são, apesar de alguns se acharem ou desejarem esse ser que não podem ser. E assim vamos seguindo: eu e ela, caminhando às vezes de mãos dadas, outras vezes nos observando por diferentes ângulos, em trechos opostos, mas sempre na mesma estrada. A ela conto meus segredos, falo sobre alguns receios, pois sei que conto com seu sigilo total. Minha menina me leva a continuar vivendo..., sem apenas existir.




23/01/2023 - ORAÇÃO DA MANHÃ - Tema: O silêncio dos humildes

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

'A Yakuza virou minha família': a artista que viveu no submundo da máfia japonesa para retratar suas mulheres

 

Mulher integrante da yakuza

CRÉDITO,CHLOÉ JAFÉ

Tudo começou em uma noite de embriaguez, 15 anos atrás, em um bar de Paris.

"Minha amiga e eu estávamos desoladas porque havíamos rompido com nossos namorados. Bebemos muito vinho e dissemos 'vamos para longe, para o Japão', mas poderia ter sido para qualquer outro lugar", conta a fotógrafa Chloé Jafé, nascida em Lyon, na França, em 1984.

"Na minha segunda viagem, pensei 'na próxima vez, fico por aqui'. Eu sentia que tinha algo a fazer aqui, mas não sabia o quê", relembra ela.

Enquanto mergulhava na cultura japonesa, desde filmes antigos sobre samurais até séries, romances e quadrinhos, Jafé começou a ser atraída pelo submundo do crime organizado, representado no Japão pela Yakuza - a máfia.

"De certa forma, é atraente", afirmou ela à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Mulheres em um mundo de homens

Dividida em grupos ou sindicatos, nos moldes da máfia italiana, a Yakuza opera em todo tipo de negócios ilegais, que incluem desde jogos de azar, drogas e prostituição até agiotagem, redes de extorsão e crimes do colarinho branco.

Seu nome tem origem nos números 8, 9 e 3 (em japonês, ya, ku e sa). Esses números compõem a pior jogada possível de cartas de baralho no Japão. Por isso, seus membros consideram o termo pejorativo.

Eles preferem as denominações gokudo ("o caminho extremo") ou ninkyo dantai ("organização honrada ou cavalheiresca").

As origens da Yakuza remontam ao século 17, mas seu auge foi na segunda metade do século 20, com o florescimento do submundo causado pelo vertiginoso desenvolvimento econômico japonês após a Segunda Guerra Mundial.

Grupo de mafiosos em Tóquio, em 1960, no auge da Yakuza

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Grupo de mafiosos em Tóquio, em 1960, no auge da Yakuza

Mas a modernização da sociedade japonesa e a perseguição policial dizimaram a Yakuza. Ela chegou a ter mais de 200 mil membros na década de 1960, mas em 2021 eram pouco mais de 12 mil, segundo estimam as forças de segurança.

E esses membros têm uma característica em comum: todos são homens.

"Percebi que não havia mulheres e me perguntava por quê", relembra Jafé. "'Certamente deve haver mulheres, apenas não se fala sobre elas', pensei."

Até que Chloé Jafé descobriu o romance autobiográfico Yakuza Moon, de Shoko Tendo, que relata a adolescência difícil da autora como filha de um gângster japonês.

"Eu me senti muito próxima dessa realidade e pensei: 'este é o meu trabalho, preciso encontrar essas mulheres e fazer alguma obra visual com elas'", ela conta.

Quando terminou o livro, Jafé decidiu viajar novamente para o Japão - desta vez, para instalar-se no país e retratar as mulheres da Yakuza.

Encontro decisivo

No início de 2013, Jafé passou a morar na capital japonesa, Tóquio, sem ter nenhum contato, nem conhecimento do idioma japonês - que é de difícil aprendizado, em parte porque sua escrita combina três alfabetos totalmente distintos.

"Era o meu projeto e sou muito teimosa", relembra ela. "Não sabia como, mas tinha que fazer aquilo. Eu sabia que não seria rápido, mas estava feliz por me dedicar a isso sem contar os dias."

Dois anos se passaram até que, já com conhecimento razoável da língua japonesa, ela conseguiu um emprego de anfitriã.

As anfitriãs (ou kyabajo, "meninas de cabaré") entretêm os clientes de clubes noturnos, normalmente homens de meia idade ou mais idosos, com quem conversam, cantam músicas no karaokê, servem bebidas e acendem cigarros.

Mulher em clubes de anfitriões

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Os clubes de anfitriões e anfitriãs movimentavam cerca de US$ 1,74 bilhão (cerca de R$ 9 bilhões) por ano até a pandemia

Chloé define as anfitriãs como "uma espécie de geishas modernas".

"Eu me envolvi totalmente com essas mulheres", ela conta. "Algumas tinham o namorado ou o pai na Yakuza e esses clubes costumam também ser dirigidos por essa máfia. Foi um bom ponto de partida para ingressar nesse mundo."

Mas sua oportunidade definitiva veio de dia, no meio da rua e por acaso, durante o festival xintoísta Sanja Matsuri, no tradicional bairro de Asakusa, em Tóquio.

Participantes do festival Sanja Matsuri, em Tóquio

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O festival Sanja Matsuri é um dos poucos eventos públicos no Japão em que os membros da Yakuza exibem suas tatuagens em público

"Sem saber como, acabei na rua de um chefe da Yakuza", afirma Jafé. "Eu estava sentada e ele surgiu vestido com um quimono e dois guarda-costas. Eu não sabia quem era, mas parecia importante." Ele era um oyabun, o capo da máfia japonesa.

Ele a convidou a sentar-se à sua mesa e Jafé ficou com seu número de telefone, com a desculpa de enviar-lhe fotos do festival.

"Eu enviei as fotos e o convidei para jantar alguns dias depois. Para ele, foi uma surpresa e eu, sinceramente, estava aterrorizada."

Dentro da Yakuza

Rompendo com a tradição japonesa que atribui todas as iniciativas ao homem, ela escolheu o restaurante ("perto de uma delegacia de polícia e de uma estação de metrô, para o caso de eu precisar correr") e ali o encontrou com seus guarda-costas.

Ela já falava bem o japonês, mas preferiu confessar suas intenções em uma folha de papel: "Sou uma fotógrafa francesa e quero fazer imagens de mulheres da máfia do seu país, de forma respeitosa e levando o tempo que for necessário. Preciso de sua ajuda para isso."

A resposta foi positiva. "Ele me disse: 'veja, posso apresentar você a pessoas desde Hokkaido [no norte] até Okinawa [no sul]", relembra Jafé. Mas primeiro a artista precisou ganhar a confiança do chefe e das pessoas à sua volta.

Mulher japonesa tatuada

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Yumi, uma das guarda-costas do chefe, ajudou Chloé Jafé a ganhar a confiança da família e da organização. Elas ficaram amigas, e a artista a retratou em diversas ocasiões

"Ele brincou comigo por um tempo. Viu que eu era jovem e bonita e pensava se poderia ou não me usar para alguma coisa, comprovar quais eram minhas intenções... definitivamente, colocar-me à prova", segundo Jafé.

Pouco a pouco, as pessoas começaram a convidá-la para eventos e reuniões da Yakuza.

"Seus guarda-costas vinham me buscar e eu não sabia onde iríamos nos encontrar. Era como em um filme. No começo, eu fazia perguntas, mas ele não respondia. Havia momentos tensos", relembra ela.

A princípio, a esposa do oyabun desconfiava dela, mas acabou acolhendo Jafé e a convidou a passar as festas de Ano Novo com a família.

O oyabun e sua esposa recebem cumprimentos no dia de Ano Novo

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O oyabun e sua esposa recebem cumprimentos no dia de Ano Novo

Ela conheceu a esposa de outro chefe, que foi a primeira retratada pelo projeto, e ampliou seus contatos com outras mulheres da Yakuza para fotografá-las.

"É horrível, mas... suspeito que algumas pessoas que talvez não quisessem ser fotografadas acabaram obrigadas a posar para mim, porque eu era amiga do chefe", confessa Jafé.

Depois das primeiras sessões de fotografia em Tóquio, seguiram-se muitas outras em diversos lugares do Japão, como Osaka e no arquipélago subtropical de Okinawa.

E foi exatamente em Okinawa, onde o submundo do crime prosperou no século 20 em volta da maior base aérea dos Estados Unidos na região, que se desenvolveu uma das séries da trilogia de Chloé Jafé, Okinawa mon amour ("Okinawa, meu amor", em tradução livre), que mostra o lado mais sombrio e marginal daquelas ilhas.

As tatuagens

A artista concentrou suas lentes especialmente nas tatuagens das mulheres da Yakuza.

"A máfia japonesa é interessante porque está muito vinculada à cultura tradicional do Japão, como no caso das tatuagens, que são relacionadas à mitologia. 

Leia a matéria completa no link:

https://www.bbc.com/portuguese/geral-62909960