sábado, 31 de agosto de 2019

O cientista americano que vazou informações sobre a bomba atômica para os soviéticos e se safou

Theodore HallEm 29 de agosto de 1949, a União Soviética tornou-se oficialmente a segunda "nação atômica" quando detonou sua primeira arma nuclear - uma bomba de plutônio conhecida como RDS-1.
O teste surpreendeu os governos ocidentais. De acordo com arquivos da CIA, por exemplo, os agentes dos Estados Unidos achavam improvável que os soviéticos pudessem produzir uma bomba nuclear antes de 1953.
Não foi uma coincidência que a RDS-1 tivesse uma grande semelhança com "Fat Man", a bomba de plutônio que os EUA detonaram sobre a cidade japonesa de Nagasaki em 9 de agosto de 1945.
Informações sobre o projeto da bomba foram passadas para os soviéticos a partir do Projeto Manhattan, o codinome do programa de armas atômicas liderado pelos EUA, em colaboração com a Grã-Bretanha e o Canadá.
Espantosamente foi um cientista americano, Theodore Hall, que ajudou as ambições nucleares de Moscou ao repassar informações sigilosas aos soviéticos.
De fato, Theodore Hall não foi o único cidadão americano que vazou segredos atômicos para os rivais, mas sua particularidade é ter se safado.
Mas como esse cientista nuclear de Nova York, ligado à Universidade Harvard, se tornou um espião?
RDS-1Direito de imagemGETTY IMAGES
Image captionOs soviéticos detonaram sua primeiro bomba perto do Cazaquistão

Segredo de Estado

O sigilo foi crucial. Para citar um artigo da revista Life publicado em 1945, "provavelmente não mais do que algumas dezenas de homens em todo o país conheciam o Projeto Manhattan".
Um desses homens era Theodore Hall.
Nascido em 20 de outubro de 1925, filho de uma dona de casa e de um empresário, Hall cresceu durante a Depressão, uma era cheia de dificuldades para os americanos comuns.
Mas isso não impediu Hall de avançar como um gênio em matemática e física.
Bomba Fat ManDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionMoscou roubou informações vitais sobre 'Fat Man', a bomba que os EUA explodiram em Nagasaki
Aos 16 anos, ele conseguiu vaga na prestigiosa Universidade Harvard, onde se formou em 1944.
Seu desempenho estelar como estudante não passou despercebido pelas autoridades dos EUA, que estavam procurando pessoas para trabalhar em seu novo programa nuclear.
Hall foi entrevistado para uma posição no laboratório secreto de Los Alamos em 1943.

Colega de quarto comunista

No entanto, o que os oficiais americanos não sabiam era que o jovem físico já havia passado por outro tipo de recrutamento.
Hall era membro da organização estudantil marxista de Harvard e, seu colega de quarto era um aluno chamado Saville Sax.
Filho de imigrantes russos, Sax era um comunista, também nascido e criado em Nova York.
Foi Sax que recrutou Hall para os soviéticos, e serviu como mensageiro dos segredos nucleares.
Explosão atômicaDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionTheodore Hall temia o monopólio dos americanos sobre as armas nucleares
Em dezembro de 1944, o jovem cientista Hall, com a ajuda de seu ex-colega de quarto, entregou o que é considerado o primeiro segredo atômico vazado de Los Alamos - uma atualização sobre a criação da bomba de plutônio.
"Durante o ano de 1944, eu estava preocupado com os perigos de um monopólio americano de armas atômicas se houvesse uma depressão pós-guerra", disse Theodore Hall em um comunicado escrito publicado no New York Times em 1997, dois anos antes de sua morte por câncer de rins.

'O Jovem'

Hall argumentou que uma URSS nuclear nivelaria o campo de jogo e serviria como contenção aos EUA.
"A União Soviética na época não era o inimigo, mas o aliado dos Estados Unidos." Para Hall, "o povo soviético lutou heroicamente contra os nazistas, a um tremendo custo humano, e isso pode ter salvado os aliados ocidentais da derrota".
Homem diante de placa do Manhattan ProjectDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionO Projeto Manhattan Project tinha regras de confidencialidade
O americano tornou-se conhecido pelos soviéticos como "o jovem" e alimentaria ainda mais Moscou com informações tecnológicas específicas, especialmente o trabalho sobre o princípio da implosão - um novo método para detonar bombas feitas de plutônio.
A bomba que os EUA lançaram sobre a cidade japonesa de Nagasaki era baseada em plutônio, ao contrário da que visava Hiroshima, que usava urânio.

Mensagens criptografadas

Os EUA e a URSS podem ter lutado contra o mesmo inimigo na Segunda Guerra Mundial, mas isso nunca impediu que Moscou e Washington se espionassem.
Na verdade, o gigantesco projeto de contrainteligência dos Estados Unidos, dirigido aos soviéticos, conhecido como Venona, começou a funcionar já em fevereiro de 1943.
Em dezembro de 1946, seus decodificadores finalmente conseguiram decifrar as comunicações do NKVD, o Ministério do Interior da União Soviética.
Os cabos telegráficos interceptados revelaram a existência da espionagem soviética no Projeto Manhattan.
Contato Hall e russosDireito de imagemNSA
Image captionAutoridades americanas descobriram Theodore Hall se encontrou com um contato russo em 1944
Hall estava fazendo seu PhD na Universidade de Chicago em 1950, quando o FBI veio bater à sua porta.
Ele havia sido identificado como colaborador de Moscou em uma mensagem criptografada.
Outro espião de Los Alamos, o físico alemão Klaus Fuchs, havia sido preso no ano anterior, confessando seu papel no envio de segredos nucleares americanos ao inimigo.
No entanto, o FBI não conseguiu extrair uma confissão de Theodore Hall, nem de Saville Sax, a quem eles também interrogaram.

Viagem à Grã-Bretanha

Nenhum cientista foi mencionado nominalmente por nenhum dos outros espiões acusados. O uso da vigilância não produziu nenhuma prova de espionagem, pois Hall estava praticamente inativo depois do Projeto Manhattan.
Havia, claro, as mensagens de Moscou, que poderiam ter sido usadas ​​como prova. Mas as autoridades americanas relutaram em usá-las no tribunal, pois isso tornaria público que elas conseguiram decodificar as mensagens soviéticas.
No final, Hall fugiu, ao contrário de outros que cumpriram pena de prisão, ou foram executados sob a acusação de espionagem.
Mas ainda assim, Hall e sua esposa temiam por sua segurança. Ele deixou seu posto acadêmico em Chicago e aceitou um trabalho de pesquisa discreto em um hospital de Nova York. Então, em 1962, uma oferta de trabalho veio da Universidade de Cambridge, e ele se mudou para o Reino Unido com sua esposa.
Theodore Hall
Image captionTheodore Hall morreu de câncer em 1999
Hall se aposentou em 1984 e estava pronto para viver uma vida discreta.
Mas em 1996, seu passado veio à tona. Os telegramas revelando seu contato com os russos perderam o caráter sigiloso e abertos ao público.
Naquela época, todas as testemunhas conhecidas das atividades de Hall já estavam mortas, incluindo Saville Sax.

Exposto

"Até foi dito que eu mudei o curso da história", disse Hall aos repórteres do New York Times.
"Talvez o curso da história, se inalterado, pudesse ter levado à guerra atômica nos últimos 50 anos, por exemplo, uma bomba poderia ter sido lançada sobre a China em 1949 ou no início dos anos 50."
"Bem, se eu ajudei a evitar isso, aceito a acusação", declarou ele.

Não houve ataques nucleares desde Hiroshima e Nagasaki, e Theodore Hall foi até o túmulo acreditando que ele tinha um dedo nisso.

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BBC

'Meu avô sobreviveu a cinco campos de concentração'

Foto de sobreviventes do Holocausto em PragaImage captiFoto de 1945 das crianças e adolescentes que sobreviveram ao horrores do Holocausto

Minha família guardou durante anos uma foto em preto e branco. Parece uma fotografia de escola, daquelas em que as crianças estão todas juntas, fora da sala de aula, olhando para a câmera.
A foto é 1945 e as crianças são todas judias. Estão em Praga. Acabaram de ser libertadas do campo de concentração Theresienstadt, que ficava perto da atual capital da República Tcheca.
As crianças da fotografia estão amontoadas, algumas sorrindo, mas há rostos sem expressão e algumas feições carregadas.
Todas elas acabaram de emergir dos horrores do Holocausto. A maioria dos pais não sobreviveu e agora as crianças são órfãs.

Retorno a Praga

Praga em maio de 2019 é facilmente reconhecível. A mesma estátua que aparece no fundo da foto, as mesmas pedras de paralelepípedos e elegantes janelas brancas das casas continuam na cidade.


Foto da família de sobreviventes do Holocausto em 2019Direito de imagemADRIAN POPE
Image captionSobreviventes e suas famílias recriam a foto de 1945

Algumas das crianças daquela foto antiga também voltaram ao local. Retornaram com maridos, esposas, filhos e netos para celebrar o fato de terem sobrevivido.
Voltaram para tirar uma nova foto. A foto dos que "não eram para ter sobrevivido".
Eu também estou na foto, com outros 12 integrantes da minha família. Também sou uma jornalista que vai contar algumas das histórias das pessoas da fotografia.
Meu avô, David Herman, é uma das crianças da foto original. No caso dele, sobreviveu a cinco campos de concentração: Auschwitz, Auschwitz-Birkenau, Buchenwald, Rhemsdorf e, finalmente, Theresienstadt.

Horrores

A minha viagem começa em Manchester, onde dois dos sobreviventes que conheciam meu avô vivem hoje.
Eles nos saúdam e nos recebem na casa deles, oferecendo sanduíches, tira-gostos e hummus (pasta de grão de bico).
Quando eu começo a perguntar sobre os horrores pelos quais eles passaram, um silêncio toma conta.

crianças no campo de concentraçãoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionFome é a palavra que os sobreviventes mais usam para descrever o que sentiam nos campos de concentração

Era a primeira vez que eu ouvia, em primeira mão, experiências de um sobrevivente com tantos detalhes - e despertou algo em mim que eu não estava esperando.
Já estive em campos de concentração antes. Fui a Auschwitz num verão, quando crianças estavam chorando por um sorvete e o guia turístico mostrava pilhas de sapatos e cabelo dos judeus.
Fui também a Theresienstadt, com meu avô e primos, quando tinha uns 10 anos.
Nenhuma dessas duas experiências me levou para perto da minha própria história como essas entrevistas com sobreviventes.

'Via a morte o tempo todo'

Sam Laskier tem 91 anos. Ele arregaça a manga da camisa e me mostra a tatuagem no braço.
Letras e números verdes parecem queimar nas dobras da pele fina dele.
"A gente via a morte o tempo todo", diz Laskier. "Você podia sentir o cheiro da carne queimada das pessoas nas chaminés de Auschwitz."
Sam Laskier conta que as pessoas normalmente sobreviviam por três meses. Mas ele passou sete meses lá e não morreu.

Tatuagem no braço de Sam Laskier
Image captionSam Laskier ganhou a tatuagem B-2413 na chegada a Auschwitz

Ele me conta os fatos, mas as emoções são mais profundas. Enquanto olhamos fotos juntos, ele diz que ainda tem pesadelos sobre os acampamentos.

Fome

"Como era ser um adolescente em um campo de concentração nazista?", pergunto.
Os sentimentos são difíceis de serem colocados em palavras. A única palavra que aparece mais de uma vez é fome.
Uma dor no estômago. Viver sem saber quando será sua próxima refeição.
"Ficávamos perturbados o tempo todo", diz Ike Alterman, também de 91 anos. "Ficávamos preocupados para saber quando viria o próximo pedaço de pão porque estávamos com fome. Estávamos famintos."
Ele abre uma velha caixa de papelão e coloca fotos sobre a mesa de jantar.

Liberdade

"Nesse momento, descobrimos que os guardas tinham desaparecido e nos foi dito que estávamos livres. Esse sou eu, o que está balançando o boné", diz Ike, apontando para um vagão cheio de corpos recém-emancipados.
"Deveríamos ser ir para a câmara de gás na manhã seguinte porque não podiam nos levar a nenhum outro lugar e havia um crematório em Theresienstadt."
Ike fala devagar, com pausas entre cada palavra. No fundo dos olhos dele, vejo um garoto de 13 anos, sendo levado de campo para campo, transportado em contêineres de gado ao longo das linhas de trem, até alcançar a liberdade.

Wagons full of concentration camp prisonersDireito de imagemIKE ALTERMAN
Image captionIke Alterman: 'Esse é o momento em que descobrimos que os guardas tinham desaparecido e nos foi dito que estávamos livres'

Liberdade. Essa palavra ilumina o rosto de Sam Laskier.
"Praga traz boas lembranças", diz Laskier. "Porque foi onde eu fui libertado, então não nos batiam nem gritavam conosco".
Os russos eram gentis com crianças. Eles dividiam pão com crianças, davam chocolate e também deixavam elas pegarem uma carona nos tranques.
Também deixaram as crianças fazer o que quisessem, inclusive se vingar dos alemães.
Mas poucos prisioneiros libertados queriam sujar as mãos de sangue. Tudo o que estavam interessados era em encher a barriga, depois de anos de fome.
Alguns deles comeram tanto que os corpos magros não aguentaram e precisaram ser hospitalizados. Outros morreram de indigestão.

Theresienstadt em 2019
Image captionCampo de concentração Theresienstadt, localizado a 60km de Praga

De volta a Theresienstadt

Juntos, visitamos Theresienstadt, antigo campo nazista de onde a maioria dos judeus desse grupo foi libertada.
Fica a 60 km de Praga, por um caminho de estradas rurais. Hoje em dia, Theresienstadt é uma cidade normal e um memorial.
Cenas cotidianas como a de uma senhora idosa empurrando um carrinho de compras se repetem enquanto grupos de turistas visitam o antigo quartel, o crematório e o atual museu.
Vamos até o cemitério. Eu divido esse momento com Arek Hersh, que ficou preso no local por oito dias antes de ser libertado.
Ele descreve o lugar ao nosso redor quando ele chegou lá pela primeira vez: pilhas sobre pilhas de corpos. "Esqueletos vivos" em depósitos.

Theresienstadt
Image captionArek Hersh descreve Theresienstadt quando ele chegou lá: pilhas e pilhas de corpos

Mais tarde, eu vejo esses rostos, a angústia, o desafio, enquanto vasculho rolos de arquivo para montar meu documentário. Registros da morte ficam gravados em minha mente.
Atualmente, as valas comuns em Theresienstadt são marcadas por lápides.
Dizem que os pássaros não cantam nos locais dos campos de concentração, mas é o único som que ouvimos naquele lugar.
Uma cerimônia memorial é realizada, o ar se enche com a oração do cantor, seguida por um minuto de silêncio para lembrar os mortos.

Celebrando os sobreviventes

Mas estamos em Praga para celebrar os sobreviventes, os que saíram dos campos com vida. Entre eles, meu avô.

Sobreviventes durante cerimônia memorial
Image captionArek abaixa a cabeça durante o minuto de silêncio na cerimônia em homenagem aos mortos durane o Holocausto

Ele foi uma das 732 crianças trazidas ao Reino Unido depois de 1945. Elas cresceram juntas, como irmãos e irmãs. Foram capazes de seguir suas vidas com sucesso e tiveram filhos.
O grupo de crianças ficou conhecido como 'Os Meninos', apesar de ter 80 garotas entre eles. As famílias deles se tornaram parte da minha também.
Eu cresci ouvindo sobre o Holocausto - meu avô sobreviveu, mas perdeu a família. Contudo, só recentemente começamos a falar sobre como as experiências traumáticas dele não pararam em 1945.
Minha mãe me diz que, quando ela era criança, nunca reclamou sobre um dia ruim na escola. O que poderia ser pior que o Holocausto?
Minha irmã e eu falávamos sobre o impacto da história do nosso avô nas nossas vidas.

Hannah, Arek e Sam
Image captionA repórter da BBC News Hannah Gelbart com Arek (esquerda) e Sam (direita)

Seria por causa dos sobreviventes que tentamos viver nossas vidas ao máximo, como se o tempo estivesse se esgotando, vivendo pelos seis milhões de judeus assassinados?
Mais de 200 pessoas foram a Praga para ver onde os pais e avôs ficaram de pé, logo depois de terem sido libertados.
Cantamos e celebramos quando os sinos do famoso relógio da cidade tocaram.
Houve tristeza quando nos lembramos dos que morreram, mas também união, alegria e determinação. Determinação para nos lembrarmos do Holocausto, contar histórias dos que passaram por isso e dos que não sobreviveram.
De pé na praça, éramos provas de que os planos dos nazistas de exterminar todos os judeus fracassaram.
Meu avô disse que não odeia os alemães. Assim como muitos sobreviventes, ele estimulou a tolerância e uma mente aberta em toda a sua família, valores que desejamos manter vivos.

David Herman e a famíliaDireito de imagemFOTO DE FAMÍLIA
Image captionDavid Herman e os netos - Hannah é a da direita

Ele morreu há dez anos, mas eu gostaria que ele estivesse aqui também. Há tantas perguntas que eu gostaria de fazer a ele.
Tenho uma foto dele, tirada quando tinha 17 anos. A cabeça dele está raspada, ele veste pijama listrado e debaixo de rosto está, em letras maiúsculas, o número: A26 44 328.
A foto foi tirada quando ele chegou no campo Buchenwald. Olho essa foto e vejo a disposição dele de ficar vivo.

David Herman no campo BuchenwaldDireito de imagemFOTO DE FAMÍLIA
Image captionDavid Herman, aos 17 anos, na chegada ao campo de concentração Buchenwald

Minha mãe vê o olhar de um adolescente perdido, que tinha visto os pais serem levados para a câmara de gás.
Estremeço ao pensar no que os olhos desses jovens viram.
*Hannah Gelbart é autora do documentário da BBC News ''The families that weren't meant to live' ('As famílias dos que não eram para ter vivido', em tradução livre)

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