segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Luiz Fux: decisão da Alerj de soltar deputados é ‘promíscua’, ‘vulgar’ e 'certamente será revista’ pelo STF

Luiz Fux
Image captionFux justificou bate-bocas entre ministros do Supremo dizendo que 'debaixo da toga bate o coração de um homem'
"Lamentável", "vulgar" e "promíscua". É assim que o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux classifica a decisão da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro de soltar os deputados estaduais do PMDB Jorge Picciani (presidente da Alerj), Paulo Melo e Edson Albertassi.
Suspeitos de formar uma organização criminosa para desviar recursos públicos, eles foram presos por determinação do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, mas a prisão foi revogada na sexta por decisão da maioria dos deputados estaduais do RJ.
Em entrevista exclusiva à BBC Brasil, Fux destaca que a Alerj não poderia ter decidido sobre as prisões sem ter consultado o Judiciário. Ele afirmou categoricamente que a soltura de deputados estaduais por assembleias "certamente" será revista pelo Supremo.
Além do Rio de Janeiro, assembleias do Rio Grande do Norte e do Mato Grosso usaram a decisão do STF de dar ao Senado a palavra final sobre a suspensão do mandato do senador Aécio Neves (PSDB-MG) para embasar a soltura de deputados estaduais.
Fux está na Inglaterra para um simpósio sobre arbitragem, na Universidade de Oxford. Antes do evento, visitou a sede da BBC, em Londres, para conceder a entrevista.
Fux no plenário do STFDireito de imagemABR
Image captionMinistro presidirá o TSE durante a próxima eleição presidencial
Ele será presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2018 e terá como tarefa conduzir a eleição presidencial num momento de crise política e polarização. Na conversa com a BBC Brasil, o ministro elogiou enfaticamente a possibilidade de o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa se candidatar a presidente no ano que vem.
"É uma figura que a sociedade admira muitíssimo e eu entendo que ele seja um grande nome nesse momento que o Brasil precisa de uma repercussão internacional de que seu dirigente é um exemplo de moralidade e de probidade. E ele saberá montar uma equipe à altura do seu próprio conhecimento, na medida em que ele foi um excelente presidente do Supremo Tribunal Federal."
Fux também defendeu flexibilizar o foro privilegiado - o julgamento do caso será retomado ainda essa semana pela Corte - e reiterou, em referência ao ex-presidente Lula, que qualquer candidato com condenação em segundo grau deve ser impedido de concorrer a cargo eletivo, com base na Lei da Ficha Limpa. "O Brasil não aceita mais candidato ficha suja", afirmou.
Lula já tem condenação em primeiro grau e há dúvidas sobre se ele poderia se candidatar à Presidência amparado em eventual decisão liminar (provisória), caso seja condenado, também, em segunda instância.
BBC Brasil - O Rio de Janeiro vive uma situação extremamente difícil. A Polícia Federal diz que havia uma organização criminosa entre Legislativo, Executivo e Tribunal de Contas para desviar recursos públicos. Como o senhor vê a decisão da Alerj de derrubar a prisão do presidente da assembleia e de deputados?
Luiz Fux - Eu entendo que essa é uma decisão lamentável decorrente de uma interpretação incorreta feita em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal (de dar ao Senado o poder de rever medidas cautelares contra Aécio Neves), por 6 a 5, apertada maioria. Portanto, entendo que a tese dessa decisão vai voltar ao plenário. Mas eles se basearam nessa decisão para entender que os deputados estaduais têm as mesmas imunidades dos congressistas federais. Entretanto, houve, no caso federal, uma provocação do Judiciário. E as assembleias estaduais estão utilizando de maneira vulgar e promíscua essa decisão do Supremo sem provocação em relação ao Judiciário. É uma decisão lamentável, que desprestigia o Poder Judiciário, gera uma sensação de impunidade e que certamente será revista pelo Supremo Tribunal Federal.
BBC Brasil - Então, eles não tinham esse direito de rever a decisão (do Tribunal Regional Federal)?
Fux - No meu modo de ver, deveria ter havido uma provocação prévia ao Poder Judiciário. O Ministério Público inclusive já ingressou com uma ação para anular essa deliberação da Assembleia do Rio de Janeiro.
Jorge Picciani sendo presoDireito de imagemFERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL
Image captionPresidente da Alerj, Jorge Picciani, foi preso por determinação da Justiça e solto após votação da própria Alerj. Para Fux, decisão da assembleia é 'promíscua' e 'vulgar'
BBC Brasil- Essas decisões (do Senado e da Alerj) não dão a impressão de que o Judiciário é um poder fraco e que o Legislativo pode tudo?
Fux- Constituição estabelece que, até a denúncia, a competência é do Poder Judiciário. Então, o Poder Judiciário não precisaria de autorização nenhuma do Congresso e das assembleias para determinar medidas cautelares. No meu modo de ver, a decisão do Supremo é incorreta. Ela restou proferida por uma maioria, mas na essência é uma decisão incorreta.
BBC Brasil - O senhor vai ser presidente do TSE na eleição de 2018. Até agora o cenário é incerto. Temos o deputado Jair Bolsonaro despontando como candidato, o ex-presidente Lula querendo concorrer, mas com risco de condenação em segunda instância, um PSDB sem candidato definido e muitos investigados... Como o senhor vê esse momento e as opções que estão surgindo?
Fux - Entendo que as eleições de 2018, em razão das candidaturas postas, à semelhança das outras eleições, serão muito questionadas. Quer porque os candidatos tem problemas judiciais, quer porque os partidos têm esse veio beligerante de tentar inserir seus candidatos e excluir os demais. O Brasil tem um sistema eleitoral muito rígido no que concerne candidatura. Temos regras específicas de elegibilidade. O momento do registro é capital, o candidato tem que mostrar que tem ficha limpa. E o Brasil não aceita mais candidatos ficha suja. Não só internamente, mas também para não dar mau exemplo no cenário internacional.
BBC Brasil - Então, se o ex-presidente Lula tiver uma condenação em segundo grau, haveria algum argumento jurídico para permitir que ele concorra?
Fux - Qualquer presidente, qualquer candidatável, qualquer concorrente que tenha condenação em segunda instância recai na Lei da Ficha Limpa. A lei tem instrumentos que eventualmente podem ser utilizados, como as liminares suspendendo o efeito da inelegibilidade. Isso vai ser analisado a cada caso concreto.
Lula em caravana
Image caption'A Lei da Ficha Limpa, qualquer presidente, qualquer candidatável, qualquer concorrente que tenha condenação em segunda instância recai na Lei da Ficha Limpa', disse Fux
BBC Brasil - Outro fenômeno da sociedade brasileira é uma rejeição da política e dos partidos tradicionais. Nesse contexto, possíveis candidaturas de pessoas que nunca tiveram experiência com política começam a aparecer. O apresentador Luciano Huck e o seu ex-colega de tribunal, Joaquim Barbosa são exemplos. Qual a sua opinião sobre essa ascensão de nomes sem bagagem política?
Fux - Entendo que a sociedade sente, em seu interior, uma falta de representatividade adequada. De sorte que, no meu modo de ver, haverá modificação do cenário político. Por outro lado, uma figura emblemática que represente a ética, a moralidade e probidade hoje é a escolha preferida do eleitor. Entretanto, essas pessoas não governam sozinhas. Essas pessoas precisam de grandes equipes. O que estamos verificando é que esses candidatos denominados outsiders têm apresentado equipes eficientes que já funcionaram em governos anteriores com muita qualidade e muita eficiência.
BBC Brasil - Especificamente falando do ex-ministro Joaquim Barbosa. O senhor acha que ele tem chance? O que o senhor acha de juízes na política?
Fux - Em primeiro lugar, até por força de ideologia anglo-saxônica, somos repugnantes a um governo de juízes, até porque juízes não podem ter filiação partidária. Mas o ministro Joaquim Barbosa não é mais juiz. É uma figura que a sociedade admira muitíssimo e eu entendo que ele seja um grande nome nesse momento que o Brasil precisa de uma repercussão internacional de que seu dirigente é um exemplo de moralidade e de probidade. E ele saberá montar uma equipe à altura do seu próprio conhecimento, na medida em que ele foi um excelente presidente do Supremo Tribunal Federal, goza da confiança legítima do povo e tem grandes companheiros que podem formar uma belíssima equipe para administrar o Brasil. Entendo até que basta o ministro Joaquim Barbosa se lançar porque várias personalidades que têm qualidade técnica para administrar o Brasil vão se apresentar para oferecer seus serviços em prol do Brasil.
Barbosa conversando com FuxDireito de imagemGERVÁSIO BAPTISTA/SCO/STF
Image captionFux diz que Joaquim Barbosa seria 'grande nome' para Presidência da República
BBC Brasil - Independentemente do resultado eleitoral em 2018, está claro que o Brasil vive um clima de divisão muito grande. E existe um grupo que pede claramente a volta da ditadura militar. Há riscos de retrocessos para a democracia?
Fux - Acho que a democracia no Brasil hoje está absolutamente sedimentada. Não há possibilidade de reversão. (...) A figura do candidato Bolsonaro significa uma reação a esse ambiente político nocivo que estamos assistindo, mas isso não significa necessariamente que nós vamos proceder a uma regressão do Estado Democrático de Direito que alcançamos. Quem vier vai ter que se adaptar a esses novos princípios, a esse ideário.
BBC Brasil - Lula e Bolsonaro já estão claramente em campanha. Lula começou a fazer caravanas e Bolsonaro divulgou vídeos. O que o senhor acha desse clima de campanha antecipada?
Fux - A legislação em relação à propaganda é muito flexibilizada. Ela exige que, para caracterizar propaganda antecipada, haja pedido explícito de voto. O que é realmente um absurdo. O TSE não vai apreciar essas questões da propaganda estritamente apegada à letra da lei. Quando nós verificarmos que a propaganda é antecipada apesar de qualquer dissimulação, nós vamos punir conforme a lei nos autoriza. O TSE não vai ser leniente com qualquer ilícito eleitoral.
BBC Brasil- Na primeira instância, mais de 100 réus na Lava Jato foram condenados até agora. No Supremo, o ritmo é muito diferente. Até agora não houve condenação. Por que essa discrepância? Não dá a ideia de que o réu se beneficia ou, no mínimo, ganha tempo quando é julgado pelo Supremo?
Fux- Há uma diferença importante, as varas de primeira instância só fazem isso. São varas especializadas em crimes de organizações criminosas. O Supremo tem jurisdição sobre todo o território nacional e julgamentos com causas em que há questões de família, direito penal, direito civil. O Supremo tem 70 mil processos para julgar. Uma vara de crime organizado profere 30 sentenças por mês no máximo. Cada ministro do tem que proferir no mínimo mil decisões por mês. De qualquer maneira, em razão da competência do Supremo, que inclusive vai ser revista em relação ao foro privilegiado, posso assegurar que nenhum desses casos da Lava Jato prescreverá.
BBC Brasil - É o momento de rever o foro privilegiado?
Fux - É o momento de rever o foro privilegiado, porque os processos sobem e descem conforme o cargo exercido pelo acusado. Então, se ele comete uma infração comum e se torna deputado o processo sobe. Depois ele perde o mandato e o processo desce. Depois ele volta a concorrer e o processo sobe. Esse sobe e desce acaba gerando prescrição e sensação de impunidade. Essa regra constitucional certamente será interpretada - já tem quase que a maioria de votos - no sentido de que só ficam no Supremo os casos daqueles candidatos que estejam no exercício do mandato e cujo delito tenha sido praticado durante o mandato.
BBC Brasil - Nos últimos anos, questões sensíveis no contexto brasileiro, como aborto de fetos anencéfalos e casamento homoafetivo, foram decididas pelo Supremo e não pelo Congresso. Aliás, tem sido assim em vários países da América Latina. É chegado também o momento de o STF dar a palavra final sobre descriminalização do aborto?
Fux - Eu tenho a impressão de que algumas questões são judicializadas porque o Parlamento não quer pagar o preço social de tomar a decisão adequada. Mas, na verdade, o lugar próprio de decidir sobre a descriminalização do aborto é o Parlamento e não o Supremo Tribunal Federal. O Parlamento tem mais expertise para essa solução do que o Supremo, principalmente porque há um desacordo moral razoável na sociedade. Quem representa a sociedade hoje, no âmbito dos poderes, é o Legislativo, que é a casa do povo.
BBC Brasil - O que a gente vê no Congresso é um movimento oposto. Está em discussão um projeto para proibir o aborto em todos os casos, colocando na Constituição que a vida deve ser protegida desde a concepção. Como fazer com essa dissonância?
Fux - Entendo que é um problema de saúde pública que a sociedade tem que decidir por meio de seus representantes. Agora, o Judiciário pode vir a ser provocado sobre essa questão. E então, num momento oportuno, vou me manifestar.
BBC Brasil- E a legalização do consumo e comércio de drogas. O senhor tem posição sobre isso?
Fux - Essa é uma questão que o Supremo está prestes a decidir. Já tem uma sombra de que essa matéria vai ser chancelada pelo Supremo. Pelo menos a descriminalização do uso da maconha o Supremo vai chancelar. A questão da comercialização também é importante, porque, segundo cientistas políticos e sociólogos afirmam, isso seria um golpe certeiro contra o tráfico, que é uma das tragédias da nossa sociedade. Por enquanto estamos debatendo a descriminalização do uso e posteriormente vamos debater a possibilidade do comércio regular da droga, assim como acontece no Uruguai e em outros países.
BBC Brasil - O governo fez mudanças nas regras trabalhistas e a propõe uma reforma na Previdência. Enquanto isso, alguns juízes recebem supersalários e há uma gama de penduricalhos à remuneração, com auxílio-moradia. O Judiciário não deveria dar sua contribruição ao esforço de ajuste fiscal?
Fux - Eu acho que o Judiciário tem que dar a sua cota de sacrifício nesse momento. No presente momento, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) está fazendo uma aferição desses supersalários, para impor cortes, ressalvando as hipóteses em que a própria lei orgânica da magistratura estabelece indenização. A juíza gestante tem que ter o mesmo direito das servidoras públicas gestantes. Os juízes têm que receber a mesma coisa que os servidores. Juízes têm férias... O exemplo do Judiciário não pode ser um exemplo que os desigualem em relação aos servidores públicos, porque eles (juízes) também prestam serviços.
BBC Brasil - Mas e os penduricalhos, que acabam engordando os salários?
Fux - Essas penduricalhos são absolutamente inaceitáveis. Vai chegar o momento em que o CNJ vai cortar totalmente esses penduricalhos. Mas às vezes são transmitidos como penduricalhos indenizações a que os juízes fazem jus há bastante tempo e que são pagas parceladamente.
BBC Brasil - Convencionou-se que os juízes só falam nos autos. Hoje, no entanto, as pessoas sabem o que é o Supremo, quem são os ministros e há transmissão em tempo real dos julgamentos. Se por um lado, há mais transparência, por outro lado, os magistrados estão submetidos a mais pressões, o que, eventualmente, prejudica a isenção das decisões?
Fux- O Brasil é o único país que tem TV Justiça. Nenhum país do mundo transmite julgamento. Agora, o Supremo decide questões subjetivas. São processos de pessoas físicas e jurídicas. E decide questões objetivas que envolvem questões morais, de razões públicas, como da descriminalização das drogas e aborto, o Judiciário deve ouvir a população. Nessas questões, não pode ser dissonante daquilo que o povo espera.
Fux em entrevista à BBC Brasil
Image captionEm entrevista exclusiva à BBC Brasil, ministro também defendeu enfaticamente candidatura de Joaquim Barbosa à presidência e disse que tendência no STF é descriminalizar porte de maconha
BBC Brasil - Percebe-se uma divisão no Supremo. Recentemente, houve bate-boca entre os ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes. Esses episódios não prejudicam a imagem do Supremo?
Fux- O ideal seria a Corte sempre dialogar antes de iniciar um julgamento. O Supremo é composto por homens que vem de diferentes lugares do Brasil, com formações ideológicas diferentes. A divisão ideológica nos julgamentos demonstra que cada um pretende fazer o que entende de melhor. As desavenças são naturais, debaixo da toga bate o coração de um homem. Cada um tem suas sensações e motivações.
BBC Brasil - Mas como o senhor vê o modo como essas divergências estão sendo manifestadas, de forma agressiva, inclusive com ministros questionando a ética e a moral dos colegas?
Fux - Essas manifestações são tão esporádicas e extraordinárias que chamam a atenção, mas elas não são corriqueiras e usuais. Cada ministro absorve para si a responsabilidade de seus excessos.

O drama ignorado de Kavumu, o povoado onde 50 meninas foram estupradas por 3 anos em rituais de magia

Cartaz com ilustração contra violência sexualDireito de imagemAFP
Image captionUm cartaz, de 2008, adverte os congoleses sobre violência sexual contra mulheres
Poucas pessoas no mundo devem saber onde fica Kavumu. Mas na República Democrática do Congo, o local ficou muito conhecido: hoje, é chamado de o "fenômeno Kamuvu". Na aldeia, entre 2013 e 2016, ocorreu uma onda de estupros de meninas que marcou o país africano.
Recentemente o caso chegou aos tribunais. Essa é a primeira vez no país que houve uma prisão em massa por conta de estupros.
Uma milícia de 18 homens - supostamente liderada por Frederic Batumike, um deputado de província - é acusada de ter violentado dezenas de garotas para seguir rituais de magia. Uma crença popular local diz que o sangue de meninas virgens dá poder contra tiros e melhora a saúde.
"Garotas entre 18 meses a 11 anos eram raptadas de suas casas durante a noite", conta Lauren Wolfe à BBC - ela foi a primeira jornalista a divulgar os casos, em agosto do ano passado.
"Havia pequenas cabanas com até 11 crianças, além dos pais. Todos dormiam. Então uma menina era escolhida (pela milícia) e levada ao campo, onde era violentada por um grupo de homens. Depois, eles a abandonavam à própria sorte", conta Wolfe.
"Quando a família acordava, não sabia onde a menina estava. Os pais encontravam a filha, e sempre ocorria o mesmo: a garota estava muito machucada e abandonada no campo", diz Wolfe.
Foram três anos de silêncio sobre os casos de estupro em Kavumu, sem qualquer busca pelos culpados.
Mãos de menina estuprada no CongoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image caption'As vidas dessas meninas foram destroçadas para sempre', diz psicóloga que atendeu garotas no Congo (Foto: Roberto Schmidt)

'Destroçadas para sempre'

No dia 9 de novembro, começaram os julgamentos dos acusados pelos crimes - a sessão deve se prolongar até o dia 26 deste mês.
"O julgamento é um sinal importante para a luta contra a impunidade", disse à agência Reuters Jean Chrysostome Kijana, ativista e representante das vítimas.
"Durante muito tempo, esse tema (estupros no Congo) tem sido deixado de lado, mas as vidas dessas meninas foram destroçadas para sempre", diz Lorena Aguirre, chefe da missão de uma ONG internacional que se encontrava precisamente em Kavumu quando os casos começaram a ocorrer.
Aguirre, psicóloga espanhola que vive no Congo há 11 anos, atendeu às vítimas.
"Meninas muito pequenas começaram a ser estupradas. Havia outros casos de estupros de mulheres e crianças durante a guerra, mas nunca houve nada parecido com que o ocorreu em Kavumu", diz Aguirre. "Praticamente toda semana aparecia uma menina muito pequena que havia sido violentada. Estavam sempre cobertas de sangue".
Baraka, Kivu do SulDireito de imagemAFP
Image captionOs estupradores de crianças faziam parte de uma mílicia supostamente comandada por deputado do Congo (Foto: Federico Scoppa)
A psicóloga diz que o número de vítimas pode ser maior, pois muitas garotas não foram levadas a tratamento e, consequentemente, não tiveram seus casos registrados. Ela assinala, assim como a jornalista Lauren Wolfe, que o número de vítimas oficiais é de pelo menos 50 crianças.
"A menor criança que atendemos tinha um ano e meio. Havia muitas de dois e três anos, mas a maioria tinha seis. A família me pedia ajuda como psicóloga, mas nós também as levávamos ao hospital", conta Aguirre.
Sua organização deu assistência médica e terapêutica, além de ajudar em exames posteriores e melhorias na educação das meninas. O problema, diz Aguirre, é que muitas vezes a ONG não podia operar em áreas destruídas pela guerra que assola o país há 20 anos -esse fator dificultou a recuperação das garotas. "Essas meninas foram escolhidas de propósito", afirma a ativista.
"Eram filhas de famílias desfavorecidas, abandonadas e isoladas do restante da população. As famílias mais pobres ganhavam 1.500 francos congoleses (R$ 3,20) por mês para manter dez filhos", diz Aguirre.
Soldado congolêsDireito de imagemAFP
Image captionA República Democrática do Congo vive conflitos armados há 20 anos - milícias dominam parte do território
Os pais não percebiam quando uma de suas filhas desaparecia?
Aguirre diz que, em alguns casos, as mães das crianças não estavam nas cabanas com os filhos porque trabalhavam à noite como prostitutas. Além disso, as cabanas são feitas de barro, o que permitia aos agressores raptar as meninas facilmente, apenas fazendo buracos nas paredes.
"Kavumu é um povoado muito pobre, um lugar caótico com uma concentração humana enorme", diz a psicóloga.

O 'diamante vermelho'

Segundo a jornalista Lauren Wolfe, os estupradores também usavam substâncias anestésicas para facilitar os sequestros. "Quando regressei ao Congo para investigar a história, no ano passado, descobri que havia uma plantação envolvida. Perguntei a mim mesma: será possível que esses homens a quem considero responsáveis pelos estupros usavam algum tipo erva anestésica? A resposta é sim", diz.
Segundo ela, a milícia ocupava ilegalmente uma plantação "extremamente fértil" que pertencera a um botânico alemão assassinado em 2012.
Mujeres asisten a una niña violada.Direito de imagemGETTY IMAGES
Image captionAs meninas eram retiradas de cabanas de famílias pobres; depois eram estupradas por grupos de homens
"Os agressores formavam uma milícia criada por um membro do Parlamento. Eles tomaram controle dessa plantação. Ganharam muito dinheiro alugando parte dessa terra e gerenciando o que crescia nela. Além disso, eles estavam enfrentando o governo", explica Wolfe.
Mas o que a magia tem a ver com os estupros?
Segundo Wolfe, os moradores da aldeia acreditam que os estupradores usaram um "pó mágico" para adormecer as pessoas. "A magia e a bruxaria fazem parte da cultura local", diz a jornalista.
A magia também seria uma possível explicação para os sequestros. "Tudo tem a ver com um que eles chamam de 'o diamante vermelho'", explica Aguirre.
Mulher e criança no CongoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionNo Congo existe uma crença de que o sangue de meninas virgens ajuda a escapar de tiros e melhora a saúde
"Há uma crença popular no Congo de que o sangue de meninas virgens imuniza o homem contra tiros, dá trabalho e saúde, além de livrar o corpo do vírus HIV", diz a psicologia, há 11 anos no país. "O sangue das meninas também ajudaria nos enfrentamentos contra o governo", acrescenta a repórter Wolfe.
Os processos criminais terão de apresentar indícios suficientes para comprovar que os acusados são culpados. O deputado Frederic Batumike é acusado de crimes contra a humanidade, assassinato, posse ilegal de armas, além de ter criado uma milícia pessoal.
A República Democrática do Congo vive conflitos armados há 20 anos - parte do país é controlada por milícias.
Margot Wallstrom, a primeira representante especial da ONU contra violência sexual em conflitos, diz que o Congo é "a capital mundial dos estupros".
bbc brasil